O globo, n.31373, 30/06/2019. Economia, p. 25

 

Após a estabilidade, uma nova revolução

Cássia Almeida 

Gabriel Martins 

Rennan Setti

30/06/2019

 

 

Em 1994, o Plano Real começava a deixar para a História a hiperinflação, que acumulava quase 5.000% em um ano, mudando radicalmente os hábitos dos brasileiros no supermercado, no banco e no cotidiano com a recuperação da confiança na moeda. Hoje, 25 anos depois da estabilização, o brasileiro experimenta uma nova revolução na sua relação com o dinheiro: a digitalização de operações financeiras.

Cada vez mais transações, incluindo as mais cotidianas, são feitas sem o uso de dinheiro vivo. A mudança vem acontecendo aos poucos — e não praticamente da noite para o dia, como foi no 1º de julho de 1994 com o início da circulação do real —e terá impacto não só nos hábitos dos brasileiros, como também na economia.

A digitalização e as inovações financeiras, dizemos analistas, ajudarão na redução dos juro sena expansão do crédito. Em apenas dois anos, 15 milhões de contas digitais foram abertas no Brasil, o que representa 10% do total de 155 milhões do país. Somente entre 2017 e 2018, os pagamentos de contas pelo celular cresceram 80%, e as transferências, 119%. Ambos já são mais frequentes em smartphones do que nos computadores.

Para especialistas, essa nova realidade tem consequências que permitem paralelos com a ruptura provocada pelo real. Se antes da moeda forte ninguém guardava dinheiro na carteira por muito tempo porque o preço do feijão era um de manhã e outro de noite, hoje cédulas perdem espaço para cartões e aplicativos guardados no celular.

COTIDIANO SEM CÉDULAS

Raul Miyazaki, diretor para a Indústria de Serviços Financeiros da Deloitte, observa que o avanço das tecnologias financeiras no Brasil só é possível na velocidade atual por causa da moeda estável e do sistema bancário saudável, conquistas do Plano Real:

—A estabilização da moeda perm iteque aspes soasse planejem. A regulamentação torna forte o sistema financeiro. Sem essas duas coisas não adianta ter a melhor tecnologia. Cédulas e moedas não fazem parte do cotidiano do estudante de Publicidade Daniel Oliveira. Aos 23 anos, ele tema maioria dos seus serviços bancários no celular. Sair de casa sem dinheiro no bolso não é problema para ele.

O transporte é pago com cartões de recarga que não existiam na época da inflação. Se precisar comprar algo, o importante para ele éter boa conexão de internet e encontrar um estabelecimento que aceite pagamentos eletrônicos, por aplicativos ou cartões. A multiplicação de maquininhas pelo comércio facilita avida de Daniel, mas ele ainda espera mais: pensa não mais na extinção do dinheiro, mas na dos cartões.

—Gostaria que as lojas tivessem aplicativos para fazer os pagamentos. Seja por transferência ou leitura de QR Code —diz Daniel, que já passou sede na rua sem achar alguém que vendesse refrigerante no cartão ou se surpreendeu quando tomou um táxi e o motorista pediu pagamento em dinheiro no fim da corrida. Já a mãe dele, atécnica de radiologia Cristiane Oliveira, de 51 anos, não sai sem dinheiro na bolsa, mesmo com acartei racheia de cartões. Ela e Daniel se diferenciam até na hora de economizar.

Ele busca vídeos na internet com indicações de investimentos e usa o celular para fazer aplicações. Já chegou a investir em bitcoin, mas hoje deixa o dinheiro em um CDB. Ela faz aplicações seguras, como títulos públicos, mas só depois de ir ao banco ouvir conselhos do gerente.

A maior cautela de Cristiane está ligada à memória dos tempos de inflação alta, algo que o filho nunca viu. Foi na transição para a estabilidade que ela aprendeu o valor da moeda estável. Só em junho de 1994, a inflação foi de 47%. No mês seguinte, com a substituição do cruzeiro real pelo real, caiu a 6,84%. Hoje, gira em torno de 3,5% —ao ano.

—Na época da inflação, a relação com dinheiro era de quantidade, não de qualidade. Eram cifras muito altas para comprar coisas simples, do dia a dia. Você nunca sabia quais seriam os preços amanhã. Meu pai comprava caixas fechadas de biscoitos, para garantir o melhor preço —recorda Cristiane.

—Desde que me casei e tive filhos, nunca estoquei produto.

EFEITO SOBRE O CRÉDITO

Ricardo Tiezzi, diretor do Boston Consulting Group (BCG), observa que o brasileiros e relaciona com os bancos pela internet há mais de uma década, mas, na era dos smartphones, avança rapidamente o relacionamento puramente digital com instituições financeiras:

— Houve alta exponencial de contas digitais abertas nos últimos dois anos, enquanto o total de contas física sé o mesmo nos últimos cinco anos. Os efeitos não se limitam ao comportamento do brasileiro.

A estrutura da economia muda. Para o economista Persio Arida, autor de um artigo em conjunto com o economista André Lara Resende, que ficou conhecido como Plano Larida e foi a base do Plano Real, o avanço da digitalização da economia contribui para ampliar o acessoa o crédito e baixara taxa de juros, um gargal opara o crescimento.

— Esse processo é bem-vindo, só tem vantagens. Com mais produtividade, o spread bancário (diferença entre o custo de captação do banco e o repassado ao cliente) diminui. É movimento firme, que avança independentemente da taxa decrescimento do país.

Tem um ganho de eficiência muito grande —diz Arida. Luiz Fernando Figueiredo, sócio-fundador da Mauá Capital e ex-diretor de Política Monetária do Banco Central, aval iaque o principal ganho da atual revolução tecnológica é o maior acessoa produtos financeiros, do crédito aos investimentos, com concorrência.

—Se antes dore alo dinheiro era um problema, agora, quanto mais virtual ele se torna, mais fácil é disponibilizá lo. Estamos apenas no começo —diz Figueiredo, cuja gestora lançou este anoaf in tech (start-up financeira) de crédito Pontte.

—Uma hipótese investigada para explicar por que os juros estão tão baixos em todo o mundo tema ver coma tecnologia. Ela mudou a disponibilidade de bens e os preços.

Agora, esse fenômeno está sedando entre os serviços. Leo Cherman começou a trabalhar no setor de crédito do Citigroup em março de 1994, pouco antes do Plano Real, e recebeu seu primeiro salário em URV, o indexador criado para a transição entre o cruzeiro real e anova moeda. Hoje, atua como diretor-executivo e fundador da SimplyPag, uma start-up financeira recém-lançada que intermedeia pagamentos entre patrões e empregadas domésticas, um exemplo do quanto o acessoa serviços financeiros ganhou tração na era digital.

—No Citi, vi como a estabilização permitiu que se desenvolvesse o crédito no país, que era quase inviável diante de uma hiperinflação. Agora, a revolução tecnológica está potencializando o acesso àqueles que começara mater crédito com o real.