O globo, n.31373, 30/06/2019. Economia, p. 27

 

'A população é a grande fiadora da estabilização'

Persio Arida 

Cássia Almeida 

30/06/2019

 

 

Um dos pais do real, o economista Persio Arida vê a moeda como conquista da população brasileira, que se tornou “fiadora da estabilidade”. Sobre os desafios de hoje, vê a reforma da Previdência que tramita no Congresso na direção certa, mas identifica paralisia nos investimentos à espera dela. Ex-presidente do BNDES, ele acredita que o país não precisa mais de um banco de fomento tão grande e diz que há uma “retórica falsa” na afirmação do ministro da Economia, Paulo Guedes, de que nunca houve um governo liberal no Brasil.

Após 25 anos, a população já considera o real uma conquista?

Hoje virou quase um bem público. O governante que permitir inflação alta será punido nas urnas. Não foi à toa que os 10% de inflação no começo do segundo governo Dilma foram, do ponto de vista de erosão de apoio popular, um dos fatores determinantes. A população é a grande fiadora da estabilização. O que deu errado, infelizmente, foi a (reforma da) Previdência, que perdemos por um voto (em 1998). O Brasil poderia ter hoje um quadro muito diverso se tivesse aprovado aquela reforma que fixava idade mínima.

E hoje, como vê o Brasil?

Hoje não tem oposição relevante. Mesmo sem articulação política, tem uma liderança no Congresso a favor das reformas, e o país está muito mais consciente dos desafios da Previdência do que estava naquela época. O cenário internacional está muito mais favorável, não tem o desafio do controle da inflação. A situação é muito mais tranquila do que aquela vivenciada antes.

Por que a economia não cresce?

Nosso crescimento atual está abaixo do normal. A Argentina tem um efeito negativo no setor real. Tem um segundo efeito que é a ênfase na reforma da Previdência como tudo ou nada, a percepção de que o Brasil pode acabar. De um lado, ajuda na aprovação. Por outro, gerou em todo o empresariado local e externo uma atitude de esperar para ver. Colocou o fluxo de investimento em compasso de espera. Vamos ver o que vai sair, qual é o número. O efeito no ânimo empresarial de investir é claramente negativo.

Aprovando a Previdência, os investimentos voltam?

Há um diagnóstico de que a limitação do crescimento é na demanda. A taxa de juros está alta demais, apolítica fiscal está contracionista demais, e, portanto, o Brasil não cresce por falta de demanda. Achoes se diagnóstico errado. Há espaço para a redução da taxa de juros, mas não é isso que vai colocar o Brasil nu marota de crescimento acelerado. Os desafios estão do lado da oferta: insegurança jurídica, abertura comercial e financeira, aumento de concorrência, mudança de leis de garantia para diminuir o spread bancário, reforma tributária. São essas agendas que aumentam a produtividade. O ministro Paulo Guedes decidiu —o tempo dirá se a decisão está correta ou não — focar 100% da energia do começo na Previdência. Mas Previdência não dá ganho de produtividade nenhum. Pode estabilizara expectativa sobre a dívida pública.

O foco na Previdência é ruim?

Aumenta a chance de aprovara reforma, mas retarda a discussão das reformas estruturais. No piloto automático, o crescimento brasileiro é baixo, mas não tão baixo como este ano indica. O Brasil cresce 2%, 2,5% ao ano, o que é insuficiente para absorver o estoque de desemprego. Tornar o Brasil menos desigual com crescimento baixo é praticamente impossível. Pôr o Brasil numa rota de crescimento acelerado, de 3,5%, 4%, é fundamental, via ganho de produtividade e imigração.

Esse crescimento deve demorar.

Sim, é verdade, mas tem muita coisa para fazer. Tem mundo favorável, uma quantidade enorme de capital externo que pode ser atraída, áreas muito produtivas, como agricultura de exportação e pré-sal.

Gostou da proposta de reforma da Previdência?

Podemos discutir detalhes, como querer afetar o BPC (benefício para idosos e pessoas com deficiência de baixa renda) quando boa parte da classe média usa o Simples indevidamente. Isso é injusto socialmente. O Congresso tirou a capitalização, mas não é nenhum drama, é muito melhor repensar FGTS e programas de previdência complementar que um programa novo de capitalização. Ela vai na direção correta, não tem como enfrentar o problema sem equacionar idade mínima. Tem um lado bom também que o ministro se afastou das ideias da campanha, de privatização maciça para cobrir o buraco da Previdência e uma capitalização como no modelo chileno desde agora. Uma ideia errada. Primeiro porque Bolsonaro está longe de ser privatizante. Segundo, é um processo lento. É uma boa proposta de reforma. Seria muito bom se os estados entrassem.

E a articulação política do governo no Congresso?

Durante o real, tinha o ministro da Fazenda, Fernando Henrique, mais Edmar Bacha que negociavam as reformas. Pós Plano Real, o ministro virou presidente e costurava a articulação que sustentava a enorme quantidade de reformas modernizantes do plano. Hoje, você tem uma situação meio paradoxal. Há um presidente inapetente ou que se mostra incapaz de fazer uma articulação na prática, com seu próprio partido perdido, mas, para sorte do Brasil, há lideranças na Câmara e no Senado comprometidas com as reformas. Pela primeira vez, estamos desafiando a tese do presidencialismo de coalizão. Temos um presidente sem capacidade de articulação, mas um Congresso que toma a si as reformas. É uma circunstância inédita. Na política não há vácuo.

Guedes disse que o Plano Real tinha deixado de lado o ajuste fiscal e que o Brasil nunca teve um governo liberal.

Demorou até chegarmos a um superávit fiscal, mas chegou a 2,75% do PIB, em 1999. A ideia de que o Brasil nunca teve um governo liberal é completamente falsa. Nós defendíamos as reformas modernizantes necessárias para sustentar o plano. Ninguém defendeu do ponto de vista ideológico. O impulso das privatizações, da criação das agências reguladoras, da abertura, do superávit fiscal, a reforma administrativa que Bresser Pereira fez. São reformas de cunho liberal. Toda vez que alguém tem uma retórica messiânica, do tipo eu estou começando uma nova era no país, desconfie.

Como vê o BNDES?

Obviamente tem que devolver os recursos do Tesouro, isso equivale a ter que vender ativos, créditos. Há um fluxo de dinheiro de impostos que vai via FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e que não faz sentido lógico atrelar imposto a um empréstimo de um banco. É um unicórnio. O banco tem que captar recurso a mercado como qualquer um. Outra questão é a função do banco, que volta ao tema da produtividade, da segurança jurídica, do sistema regulatório, concessões e avanços na Lei Geral de Garantias. Nesse cenário, a economia prescinde de empréstimos estatais.

O BNDES sempre teve o papel de financiador da infraestrutura.

Uma coisa é o passado, em que não existia empréstimo de longo prazo. Hoje, há debêntures incentivadas, fundos de infraestrutura no mundo inteiro. O que falta é uma estruturação jurídica que permita alavancar com segurança projetos de infraestrutura. Se houver isso, não há limitação mais.