O Estado de São Paulo, n. 46009, 06/10/2019. Notas e informações, p. A3

 

A reação das corporações

06/10/2019

 

 

Bastou o Congresso derrubar 18 dos 33 vetos referentes à Lei do Abuso de Autoridade (Lei 13.869/19) para que se irrompesse a reação das corporações contra a nova lei. Menos de uma semana depois de o Congresso ter restaurado artigos importantes, que criminalizam o exercício abusivo da autoridade, protegendo, portanto, garantias e liberdades fundamentais dos cidadãos, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais de Tributos dos Municípios e Distrito Federal (Anafisco) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) protocolaram no Supremo Tribunal Federal (STF) duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra a Lei 13.869/19.

A ação da Anafisco insurgese contra três artigos da nova lei que, no seu entender, restringiriam o exercício do cargo de auditor fiscal. Tal afirmação revela a confusão que a entidade faz entre exercício do cargo e abuso de poder. Por exemplo, a Anafisco diz que o art. 29 é inconstitucional. Ele prevê detenção de seis meses a dois anos a quem “prestar informação falsa sobre procedimento judicial, policial, fiscal ou administrativo com o fim de prejudicar interesse de investigado”. Ora, como pode fazer parte do exercício da função pública prestar informação falsa com o fim de prejudicar a pessoa investigada? Se é essa a liberdade de atuação que desejam os auditores, muito necessária é a Lei do Abuso de Autoridade.

Mais ampla, a ação proposta pela AMB dirige-se contra 16 dispositivos da Lei 13.869/19. Segundo a associação, a nova lei atentaria contra a independência judicial. Ora, o texto legal é cristalino no sentido de que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”.

A Lei 13.869/19 não veio restringir a liberdade de interpretação dos juízes na hora de aplicar o Direito. O escopo da nova lei é punir um específico modo de exercer o cargo público: a atuação dolosa contra a lei “com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”. A Lei 13.869/19 veio, assim, reafirmar o Estado Democrático de Direito, onde o poder deve ser exercido dentro dos estritos limites legais. Não cabe impunidade a quem utiliza dolosa, ilegal e abusivamente o poder do cargo público para interesse pessoal.

Insurgindo-se contra a possibilidade de criminalização da conduta abusiva de magistrados, a AMB alega que a nova lei tipifica “condutas cuja potencialidade lesiva é mínima. (...) O abuso há de ser corrigido em cada processo, por meio de recursos próprios e adequados e, excepcionalmente, por meio de sanção disciplinar administrativa”. Há aqui uma grande distorção, que talvez seja a razão de tantas incompreensões a respeito da nova lei.

Ao contrário do que diz a AMB, a conduta abusiva de magistrados, bem como de outras autoridades, é sumamente lesiva. Por exemplo, uma prisão manifestamente ilegal, decretada com a finalidade específica de prejudicar uma pessoa, provoca danos irreparáveis. Postular que uma conduta de tal gravidade não deva receber sanção penal – no máximo, uma sanção administrativa – é menosprezar o valor da liberdade.

Como bem afirma a AMB, o Direito Penal deve estar restrito à defesa dos bens jurídicos mais relevantes. Chama a atenção, no entanto, que a entidade não qualifique de relevantes os bens jurídicos protegidos nos dispositivos da lei contra os quais se insurge. Eis uns exemplos: o direito de não ser preso ilegalmente, o direito ao silêncio, o direito à ampla defesa, o direito de não ser perseguido arbitrariamente pelo poder público, o direito de não ter bens bloqueados ilegalmente. Se isso não merecer proteção da lei, o que deverá merecer? Vale lembrar que a Justiça aplica a pena de detenção de seis meses a dois anos a quem desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Não é hora de se instaurar um mínimo de equilíbrio?

A Lei 13.869/19 não retira nenhuma vírgula da autoridade dos juízes e dos funcionários públicos. O que ela veio foi retirar a impunidade de quem abusa dolosamente de sua autoridade. Mais constitucional, impossível.