O globo, n.31372, 29/06/2019. Economia, p. 24
Para analistas, benefício a curto prazo é político
Jussara Soares
Rennan Setti
Janaína Figueiredo
Henrique Gomes Batista
29/06/2019
Negociado ao longo de 20 anos em torno de objetivos econômicos, no curto prazo, o principal dividendo do acordo entre Mercosul e União Europeia é político, tanto no front interno como externo, segundo fontes nos governos e especialistas. A leitura é que o governo adotou postura pragmática nas negociações, mostrando queécap az de “entregar” oque promete. O resultado seria um fortalecimento do Planalto em sua queda de braço com o Congresso em torno da Previdência. Para o governo Argentino, o acordo é visto como instrumental para as ambições eleitorais de Maurício Ma cri, que enfrenta recessão e inflação alta. Já nocas odos europeus, seria o recado perfeito à escalada protecionista de Donald Trump.
Em Brasília, um integrante do Planalto acredita que o pacto sinaliza ao mercado eà sociedade que o governo Bolsonaro “não é mau negociador”. Para um dos principais auxiliares do presidente, mostra ainda ao Legislativo que, “quando atua sozinho”, o governo entrega o que promete.
Membros do governo também veem a celebração do acordo como uma vitória pessoal do chanceler Ernesto Araújo, criticado por seus
pares pela condução ideológica da política externa. Como ponderou José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), o pacto seria “uma espécie de volta ao jogo” para Itamaraty, após essas críticas.
O acordo atende ainda à equipe econômica e ao próprio Bolsonaro na estratégia de sinalizar políticas liberais, lembrou Welber Barral, ex-secretário de comércio exterior e sócio da consultoria BMJ. Isso apesar do alinhamento ideológico com os EUA de Donald Trump, que trava guerra protecionista com a China.
—Esse governo tem pregado a liberalização economia. Logo, esse acordo é um sinal nesse sentido. E tem uma importância simbólica de se anunciar isso durante o encontro do G-20, do qual fazem parte governos de perfil mais protecionistas, como os EUA. Ideologia, ideologia, negócios à parte —brincou. No país vizinho, economistas que frequentam reuniões no governo ouviram nas últimas semanas o insistente comentário de que “a ordem de Macri é que a Argentina quer fechar o acordo a qualquer preço, entregando qualquer coisa”. A sensação é que a meta do presidente é claramente política, a quatro meses de uma eleição que terá a ex-presidente Cristina Kirchner na chapa opositora — além da sexta maior inflação do mundo e uma recessão como adversárias.
Os argentinos, como os brasileiros, estão entusiasmados com a possibilidade de ampliar seu mercado de produtos agrícolas e preocupados com a entrada de produtos industrializados europeus. Mas Macri não está preocupado com isso agora, disseram fontes. Sua meta imediata é usar o triunfo em Bruxelas como uma das maiores conquistas de sua desgastada e criticada gestão. — O acordo só saiu porque houve uma confluência de interesses dos governos de Brasil e Argentina. Esse anúncio é muito importante para o desafio eleitoral de Macri. Politicamente, o acordo é muito mais importante para a Argentina do que para o Brasil —analisou Barral.
IMPORTÂNCIA POLÍTICA
Para José Botafogo Gonçalves, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), que foi embaixador em Buenos Aires, o acordo pode de fato ajudar Macri porque “a população argentina já se convenceu de que seu futuro não pode ser desvinculado do brasileiro.”
—É uma vitória da geografia sobre o nacionalismo econômico —definiu.
Quanto à UE, Gonçalves acredita que o acordo “terá uma importância política que talvez nem mesmo eles se dão conta”. Isso graças ao dinamismo econômico que chegará em um momento de fragilidade causada pelo Brexit, dificuldade de crescimento e tensão com a Rússia. Segundo diplomatas brasileiros como o embaixador José Alfredo Graça Lima, um dos que iniciaram as conversas com a UE, é ainda um recado aos Estados Unidos eàpolítica comercial do governo Donald Trump, que não esconde seu descontentamento com a entrada de produtos industrializados europeus, como os carros alemães.
Na visão dos europeus, há também ganhos políticos em sua relação com o próprio Mercosul. Eles acreditam que, com o maior entrosamento econômico, terão mais influência para tentar evitar que o governo brasileiro afrouxe regras ambientais, ameaçando a Amazônia, por exemplo. Isso já foi indicado por Angela Merkel (Alemanha) e, principalmente, Emmanuel Macron (França).
—Politicamente, o acordo é bom para todos os envolvidos. Agora, temos que esperar para ver o impacto econômico
—resumiu Castro, da AEB.
“É uma vitória da geografia sobre o nacionalismo econômico” _ José Botafogo Gonçalves, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri)
“Ideologia, ideologia, negócios _ à parte” Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior
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'É um ganho institucional para o Mercosul'
Janaína Figueiredo
29/06/2019
Na visão do embaixador José Alfredo Graça Lima, um dos primeiros negociadores do Brasil nas conversas entre Mercosul e União Europeia (UE), o entendimento selado ontem em Bruxelas representa, principalmente, “um grande ganho institucional” para o bloco latinoamericano.
O embaixador acompanhou todo o processo da negociação e ainda manifesta dúvidas sobre o que realmente o Mercosul conquistou com o acordo.
O que ganharam e o que perderam os países-membros do Mercosul na negociação?
Em termos de acesso a mercados, ainda é necessário conhecer detalhes do acordo que permitam saber até que ponto os países do Mercosul poderão ampliar sua participação no mercado europeu. Há cem produtos que ficaram de fora do acordo, que produtos são esses? Porque cem produtos é muita coisa.
O que se sabe até agora é que os europeus vão liberalizar 100% do mercado de produtos industrializados, por exemplo...
Sim, mas, até onde eu sei, grande parte desse mercado já estava liberada. Ainda não está claro qual será o ganho real, líquido, desse entendimento.
O que já pode ser comemorado, então?
O que merece ser comemorado é o ganho institucional para o Mercosul, que estará mais aberto e disciplinado. Mas não são ganhos quantificáveis. Em termos de produtos, por exemplo, sobre óleo de soja e processados em geral ainda não temos muita informação. Para carnes, sabíamos que teríamos cotas, mas qual o tamanho das cotas e por quanto tempo elas vão vigorar?
Esse pode ser considerado um acordo mais político do que econômico?
Esse acordo é uma mensagem política altamente positiva neste momento do mundo. E, no caso da Argentina, haverá um ganho político interno, já que o governo Macri mostrará o entendimento como uma vitória. Mas, como blocos, Mercosul e UE estão mandando um recado para os Estados Unidos e a política comercial do presidente Donald Trump.