O Estado de São Paulo, n. 46005, 02/10/2019. Espaço aberto, p. A2

 

Ao legislar, STF despreza os direitos das vítimas

José Nêumanne

02/10/2019

 

 

Hoje o Supremo Tribunal Federal (STF) dará golpe definitivo no Estado de Direito no Brasil ao inventar privilégio de réus de colarinho-branco delatados de tomarem conhecimento antecipado do que contaram a respeito deles delatores premiados no processo. O benefício, que não é previsto na Constituição, no Código Penal nem na lei vigente da delação premiada, já foi concedido a Aldemir Bendine, ex-presidente Banco do Brasil e da Petrobrás no governo Dilma Rousseff, do PT. E deve se estender ao ex-gerente da Petrobrás Márcio Almeida Ferreira. O golpe será mais profundo e nefasto se privilegiar 143 outros condenados, entre os quais, Lula.

Já se formou maioria com os seis votos vencedores de Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello, sendo vencidos o relator Edson Fachin, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso. Os de Marco Aurélio Mello e do presidente Dias Toffoli darão ampla maioria, que foge às decisões apertadas de seis a cinco que vinham sendo mais comuns e levam à conclusão de que a distância que separa “garantistas da impunidade” dos por estes chamados de “câmara de gás” aumenta, negará na prática a fama da Primeira Turma e confirmará a tendência leniente da Segunda, com Cármen votando como votaria seu antecessor, Dias Toffoli.

Ainda que se considere justo que o condenado objeto de delação premiada só terá seu exercício do direito de defesa completado com o conhecimento do que depuseram a seu respeito os delatores premiados, este seria um tema da alçada do Legislativo. Pois, mesmo no Brasil, onde a lei e os julgamentos de altos tribunais beneficiam mais quem a viola do que quem sofre os efeitos das violações, ao contrário dos países civilizados, não cabe à “excelsa” Corte definir o que é justo. Mas, sim, interpretar o que a lei determinar: o delito ou a inocência do cidadão julgado. Em momento algum da História do Brasil livre se permitiu à Justiça usurpar o poder de legislar. Este só cabe aos eleitos.

Apesar disso, ministros, turmas e plenários do STF têm legislado em processos importantes sem a menor cerimônia. O caso mais grave e mais sério foi o de Ricardo Lewandowski, que presidiu a sessão do Congresso em que Dilma Rousseff foi deposta por decisão de mais de três quintos dos parlamentares. Inserido pela Constituição na sessão final do julgamento para garantir a constitucionalidade irrestrita da decisão, ele permitiu a ignomínia de os senadores presentes, sob a liderança do 12 vezes processado no próprio STF, Renan Calheiros, rasurarem a Carta e mutilarem seu texto. A complacência do garantidor da lisura da ação eximiu a condenada de cumprir oito anos sem assumir nenhum cargo público.

Madame não se fez de rogada e disputou uma vaga no Senado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) em Minas. No pleito permitido pela benemerência do presidente da sessão, os cidadãos logrados com a rasura agiram com extremo espírito de respeito à ordem jurídica, desprezada por seu guardião. Primeiramente, contaram aos pesquisadores de intenção de voto que lhe dariam a maior votação. Nas urnas, em silêncio, sem bravatas nas redes sociais nem manifestações de indignação, deramlhe, de fato, a menor votação.

Esse foi o mais absurdo, mas não o único momento em que um dignitário da Justiça passou por cima da lei, por cujo cumprimento tem a obrigação funcional de zelar. Recentemente tomamos conhecimento de que o colegiado em unanimidade criou uma modalidade criminal inexistente ao equiparar a homofobia ao racismo. No caso, o time completo jogou para a plateia e comemorou o gol com a torcida. Com a mesma desenvoltura agora se prepara para esticar o direito de defesa de réus delatados numa tentativa grotesca de exercitar o ódio de alguns membros do colegiado pelo clamor popular e por agentes da lei, vistos como desafetos.

É, no mínimo, interessante a coincidência entre os responsáveis pela presença dos 11 usurpadores do Poder legislador e os beneficiários de suas decisões monocráticas e majoritárias, sejam em turmas, sejam no plenário. Moraes, que deu início à dissidência vencedora no julgamento, foi nomeado por Michel Temer, citado em delações sobre o Porto de Santos e outros. Lewandowski, Toffoli, Cármen e Rosa chegaram ao Olimpo pelas mãos dos ex-governantes mais delatados da História, Lula e Dilma Rousseff, protagonistas da explosiva lista de Palocci. Marco Aurélio deve a honra ao primo Collor, que dispensa apresentações. E Celso, a Sarney. Gilmar poderia ser a exceção, pois ninguém delatou Fernando Henrique. Mas tem exercido sua generosidade explícita em prol de antigos colegas no governo tucano, caso de Paulo Vieira de Souza, que foi assessor técnico do secretário de Governo, Aloysio Nunes, quando o ministro foi assessor jurídico da Casa Civil e advogado-geral da União.

Fux, Fachin e Barroso foram nomeados pelos delatadíssimos ex-presidentes petistas e votaram contra, mostrando que nem sempre a gratidão inspira os supremos desígnios.

Mas gratidão não é a única inspiração do animus legislandi do alto pretório. Há também o proveito próprio, que explica o silêncio dos 11 diante do édito do imperador Toffoli I que estendeu ao inteiro território nacional a sede da casa ao calar críticos e proibir órgãos públicos de investigarem o filho de Bolsonaro e a mulher dele próprio e a do colega Gilmar. Resultou ainda na abjeta censura à revista Crusoé e no mandado de busca e apreensão na casa do ex-procurador-geral Rodrigo Janot, acusado do delito inusitado de mera intenção homicida não realizada.

Com o Legislativo impedido de refrear os impulsos “legislatórios” dos ministros do STF pela dependência de sua boa vontade para suspeitos, condenados e apenados da alta política, e o Executivo disponível à troca de favores, Atena garante a tirania de seus pontífices.