Correio braziliense, n. 20508, 15/07/2019. Mundo, p. 12

 

Caiserina em apuros

Silvio Queiroz

15/07/2019

 

 

Alemanha » A chanceler Angela Merkel firmou, neste século, a imagem de âncora da estabilidade no país e na Europa, mas vem exibindo repetidos sinais de fragilidade na saúde, que coincidem com um acelerado enfraquecimento político

A Europa não teve, neste século, uma liderança capaz de traduzir mais claramente a hegemonia política da potência que se firmou como a âncora da estabilidade continental. Angela Merkel, a chanceler (chefe de governo) da Alemanha, firmou desde 2005 a imagem de um porto seguro para as angústias do continente com os desafios da nova era. Matou no peito a crise na zona do euro, abriu os braços para as levas de migrantes que se lançaram à travessia do Mediterrâneo, fugindo dos conflitos na Síria e no norte da África. Chegou a ser vista como a caiserina — imperadora, em versão importada para o alemão do romano César. Mas a vida insistiu em se mostrar diferente e desafiadora. E agora, sem ter ainda a própria sucessão encaminhada, ela prepara a retirada para o fim do mandato, em 2021, sem a certeza de que se manterá no poder até lá.

Às incertezas políticas, reforçadas pelo declínio consistente de seu partido, a União Democrata Cristã (CDU), se somam preocupações com a saúde da governante alemã. No intervalo de um mês, as câmeras flagraram três momentos em que a chanceler lutou para disfarçar tremores durante solenidades públicas. A própria Angela Merkel esforçou-se em convencer os cidadãos de que não se tratava de nada sério. Porta-vozes e outros altos funcionários fizeram coro, empenhados em desmentir qualquer risco de que o país pudesse passar por uma renovação antecipada de liderança. Mas, aos olhos de quem observa o cenário político alemão e europeu, a imagem sugeriu um paralelo com o quadro político do país e do continente. Tudo que parecia sólido e seguro estremece a olhos vistos.

Os incidentes envolvendo a saúde da chanceler coincidem com o momento político mais difícil na história do seu partido, a União Democrata Cristã (CDU), que vem de amargar por duas vezes um recorde negativo histórico nas urnas. Primeiro, nas eleições legislativas de 2017, quando a legenda mal ultrapassou o patamar de 30%, o que demandou seis meses de negociações para recompor o governo — um vácuo político jamais experimentado em três décadas de reunificação, e mesmo nos 70 anos desde a reordenação política que se seguiu à derrota do nazismo na 2ª Guerra Mundial. O revés se repetiu nas eleições de maio passado para o Parlamento Europeu. Nas duas ocasiões, a CDU foi a legenda mais votada, mas as últimas pesquisas de opinião colocaram pela primeira vez no alto os Verdes.

Dura na queda

Até mesmo os adversários aprenderam a respeitar um traço distintivo e singular da chanceler. Angela Merkel parece por vezes acanhada, introvertida, defensiva. Mas é impávida. Quem não a conhecia assistiu a uma demonstração eloquente de coragem política em 2005, quando ela conquistou o primeiro mandato, em uma eleição atípica. A CDU superou por mero um ponto percentual o Partido Social Democrata (SPD), de Gerhard Schröder.

Político veterano, com experiência de oito anos como governador da Baixa Saxônia e sete como chanceler, ele apresentou-se soberbo no programa clássico de tevê da noite da eleição, em 2005. Afirmou com todas as letras que “a senhora Merkel” não tomaria seu posto “jamais”. Diante da solidariedade algo constrangida dos demais — políticos e jornalistas —, ela não se alterou. Ao fim de três meses de difíceis negociações, CDU e SPD viram-se forçados a selar um acordo de coalizão. Schröder, que rejeitara a aliança, deixou o cargo. Merkel, então com 51 anos, tornou-se a primeira mulher a governar o país. Mais que isso, era a primeira vez que a chancelaria estava em mãos de um político com origem na antiga Alemanha Oriental comunista.

Angela Kasner nasceu em 17 de julho de 1954, em Hamburgo, na então Alemanha Ocidental. Menos de um mês depois, o pai completava a formação em teologia como pastor protestante luterano e aceitava um posto do outro lado da fronteira interalemã. A filha cresceu em uma pequena localidade na área rural próxima a Berlim Oriental. Como praticamente todas as crianças de sua geração, frequentou a organização dos pioneiros, uma variante comunista do movimento escoteiro, retratada com algum sarcasmo na comédia Adeus, Lênin. Formou-se em física na Universidade Karl Marx, hoje Universidade de Leipzig. Lá, conheceu Ulrich Merkel, com quem se casaria em 1977 — para divorciar-se em 1982.

Militância

Ao contrário de muitos contemporâneos da academia, onde seguiu carreira como doutora em química quântica e professora, Angela jamais pediu ingresso na Juventude Livre ou no Partido Socialista Unificado (comunista). Tampouco cedeu ao assédio para tornar-se informante da Stasi, a temida polícia política do regime, cujos tentáculos entranhados na sociedade formam o enredo de outro clássico do cinema alemão contemporâneo, A vida dos outros. Os registros biográficos não associam a pacata professora universitária com os movimentos de contestação que germinaram em 1989. Consta que, na noite histórica de 4 de novembro, quando um ruído de comunicação apressou a abertura do Muro de Berlim, ela frequentava a sauna, como de hábito nas quintas-feiras.

Angela Merkel não demorou a acertar o passo com um país em torvelinho. De início, associou-se ao movimento alternativo Amanhecer Democrático, que em março de 1990 disputou a primeira eleição democrática nos 40 anos de Alemanha Oriental. Em agosto, aderiu à democracia cristã, que logo se fundiria à CDU do então chanceler, Herlmut Kohl. Governante mais longevo do país no pós-guerra, ele enxergou de pronto o potencial e fez dela ministra para assuntos da juventude no primeiro governo da reunificação alemã, oficializada em outubro de 1991. A essa altura, ela tinha se casado com um colega professor de química, Joachim Sauer — sem abandonar o sobrenome trazido do primeiro casamento.

Herdeira

A “garota de Kohl”, como foi batizada no ambiente machista da política alemã, não teve pressa em construir um caminho próprio, mas tampouco hesitou quando se apresentou a oportunidade. Em 1998, ao fim de 16 anos como chanceler, Kohl foi batido pelo desafiante social-democrata, Gerhard Schröder. Renunciou à liderança da CDU e foi substituído pelo último primeiro-ministro da Alemanha Oriental, Lothar de Maizière, que seria levado também a renunciar quando foram reveladas suas relações com a Stasi. Merkel amargou uma última imposição machista em 2002, quando o partido optou por ir às urnas sob a liderança de Edmund Stoiber, premiê da Baviera e líder da União Social Cristã (CSU), legenda irmã da CDU. Foi apenas três anos mais tarde que a discreta herdeira do chanceler da reunificação teve sua chance. E ganhou quatro eleições federais seguidas.

Quando formou o útimo governo, no início de 2018, ao fim de seis meses de negociações para renovar a difícil aliança com o SPD, que os alemães chamam de “grande coalizão”, a chanceler parecia ter asseguado o privilégio de igualar-se ao mentor como a governante mais longeva da Alemanha pós-nazista. Se passar de setembro próximo, terá superado o patriarca da CDU Konrad Adenauer, que liderou o país de 1949 a 1963. Nesse meio tempo, porém, terá de administrar o declínio da legenda, pelo qual tem sua parcela de responsabilidade.

Em 2015, em meio à chegada em massa  à Europa de imigrantes e refugiados do Oriente Médio e da África, ela abriu as portas da Alemanha, que recebeu naquele ano mais de 1 milhão de estrangeiros. Desde então, cresce ano a ano o prestígio da formação de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD). Como contraponto, quem se fortalece não é a CDU nem o SPD, parceiro de coalizão, mas os Verdes. E os correligionários começam a examinar, com preocupação, o cenário que se delineia para o momento em que a matriarca sair de cena.

Frases

Angela Merkel parece por vezes acanhada, introvertida, defensiva. Mas é impávida

A “garota de Kohl”, como foi batizada no ambiente machista da política alemã, não teve pressa em construir um caminho próprio, mas tampouco hesitou quando se apresentou a oportunidade

Com 51 anos, ela tornou-se a primeira mulher e o primeiro político da ex-Alemanha Oriental a governar o país