Valor econômico, v.20, n.4747, 10/05/2019. Opinião, p. A12

 

Regulação obsoleta pode prejudicar o consumidor 

Ricardo Fenelon Jr.

10/05/2019

 

 

Recentemente a Comissão Mista do Congresso Nacional designada para analisar a Medida Provisória nº 863, editada no final de 2018, aprovou novo texto para a proposta que altera dispositivos do Código Brasileiro de Aeronáutica e permite 100% de capital estrangeiro em empresas aéreas brasileiras.

Inicialmente, a medida provisória trazia de forma clara e direta em seu texto a intenção única de permitir investimentos estrangeiros em pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras, com sede e administração no Brasil.

Na exposição de motivos, o governo federal argumentou que o limite atual de 20% de participação de capital estrangeiro com direito a voto em empresas de transporte aéreo faz com que o Brasil seja um dos países mais fechados a investimentos nesse setor, só não sendo mais restritivo que Arábia Saudita, Etiópia, Haiti e Venezuela.

Além disso, argumentou que tal limitação faz com que o transporte aéreo seja o setor da economia brasileira mais restritivo a investimentos estrangeiros. Nos setores de aeroportos, portos, ferrovias, hospitais, telecomunicações, energia elétrica, saneamento básico, construção, turismo, varejo, mineração, óleo e gás, agricultura, bancos e seguros, estrangeiros já podem, há algum tempo, deter até 100% do capital com direito a voto.

O objetivo da medida provisória é louvável e o potencial dessa abertura do mercado é enorme, pois com a retirada desses obstáculos a investimentos poderíamos ter mais empresas aéreas se constituindo no Brasil para oferecer novos e diferentes serviços aos passageiros. Os benefícios gerados pelo provável aumento da concorrência são óbvios demais para serem detalhados.

Ocorre que o texto aprovado pela Comissão Mista do Congresso Nacional na última semana, com as devidas vênias, alterou completamente não só o texto da medida provisória, como também os possíveis efeitos e resultados. Duas mudanças significativas foram feitas. Primeiro, foi introduzido um tema que na proposta inicial não estava presente, o retorno da franquia de bagagem despachada obrigatória de 23 quilogramas em voos domésticos. Além disso, foi criada uma restrição de que a aprovação de 100% de capital estrangeiro só ocorrerá se pelo menos 5% dos voos dessas empresas forem regionais. É importante destacar, portanto, que após quatro meses de tramitação, dois novos assuntos foram inseridos no texto e aprovados: franquia de bagagem e voos regionais.

Não há qualquer intenção, ou presunção, de questionar o importante e essencial papel do Congresso Nacional de discutir esses ou quaisquer temas de interesse do país. Por outro lado, do ponto de vista técnico, não pode haver omissão. É preciso advertir que o provável resultado do texto que agora será votado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal dificilmente atingirá o objetivo inicial da medida provisória. Se aprovado dessa forma, é improvável que novos investimentos estrangeiros sejam realizados no setor, é improvável que companhias de baixo custo e baixa tarifa surjam no Brasil e é improvável que haja aumento no número de voos regionais.

Retroceder à regra de que empresas aéreas brasileiras são obrigadas a oferecer a todo passageiro, independentemente de sua escolha, uma franquia de bagagem despachada de 23 quilogramas, coloca o Brasil no rol dos poucos países, três ou quatro, que optam por uma regulação obsoleta em relação ao resto do mundo. Com esse tipo de intervenção no mercado, infelizmente, vamos continuar vendo à distância, em outros países, incluindo Argentina, Chile e Colômbia, o crescimento e o aumento das participações de mercado de empresas que têm baixo custo e oferecem passagens mais baratas, enquanto no Brasil até hoje não existe uma companhia aérea verdadeiramente low-cost (LCC) ou ultra low-cost (ULCC).

Por outro lado, aprovar a possibilidade de 100% de capital estrangeiro com direito a voto em empresas aéreas brasileiras, mas com uma restrição de 5% de voos regionais, é similar a manter a atual restrição. Não é impossível, mas dificilmente uma companhia, especialmente as low-cost, viria para o Brasil com esse nível de intervenção no seu modelo de negócio, além de não poder definir sua política de receitas auxiliares com relação a bagagens, assentos, entre outras.

Um dos argumentos apresentados para essa mudança é o de que não se pode abrir um mercado com tanto potencial como o do Brasil sem alguma contrapartida. Do ponto de vista técnico, o entendimento é exatamente o contrário. Não serão os investidores os privilegiados em investir no país, mas sim os brasileiros que serão beneficiados com novas empresas, novos serviços e mais concorrência no mercado.

Temas complexos como esses não podem ser definidos do dia para a noite, precisam ser amplamente debatidos e estar acompanhados de robustas análises de impacto regulatório, bem como de pareceres técnicos. O caso da desregulamentação da franquia de bagagem é um exemplo sólido disso. Todas as vezes que técnicos, sejam da Agência Nacional de Aviação Civil, do Tribunal de Contas da União, da Câmara dos Deputados ou da antiga Secretaria de Acompanhamento Econômico, realizaram análises e estudos sobre o caso, a conclusão foi a mesma: de que a regulação está correta do ponto de vista das melhores práticas internacionais e de que tende a ser benéfica para o consumidor no longo prazo.

Infelizmente, a aprovação da Medida Provisória nº 863 de 2018, nos termos propostos pela Comissão Mista, reiteradas as vênias, tende a beneficiar na verdade as empresas aéreas já estabelecidas no país, em especial nesse momento no qual uma das empresas, que chegou a ter aproximadamente 14% de participação de mercado, está em processo de recuperação judicial e reduzindo significativamente os seus voos. De forma inversamente proporcional, tende a ser prejudicial aos consumidores, com o aumento da concentração no mercado nacional e a redução da competitividade.