Correio braziliense, n. 20507, 14/07/2019. Brasil, p. 7

 

Culpados, até que se prove o contrário

Jorge Vasconcellos

14/07/2019

 

 

Segurança » Réus primários, milhares de brasileiros enfrentam o drama da descaracterização da prisão preventiva e da morosidade processual, que os obriga a permanecerem longos períodos encarcerados à espera de julgamento

O juiz de direito Paulo Irion, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), fez um desabafo em rede social, logo após presidir um julgamento. “Terminando sessão do Tribunal do Júri. Réu preso preventivamente há 681 dias, absolvido a pedido do Ministério Público. A prisão preventiva, a prisão antes do tempo, necessita ser mais discutida”, escreveu. Ao comentar o post, o advogado Pedro Surreaux citou um caso ainda mais grave. “Tenho cliente, primário, preso preventivamente há 1.092 dias, por organização criminosa. O processo era do Foro de Viamão, agora está na 17ª Vara Criminal da Capital (Porto Alegre). Os réus ainda não foram interrogados nem têm audiência designada”, criticou o defensor.

As mensagens dos dois reativa o debate sobre um drama enfrentado por milhares de cidadãos, não apenas no Rio Grande do Sul, mas em todo o país. As postagens ocorreram em 18 de junho e atraíram a participação de outros internautas, que também expressaram preocupações sobre a aplicação da prisão preventiva e a morosidade processual, que obrigam réus primários a permanecerem longos períodos encarcerados à espera de julgamento. Nessa situação, ficam expostos a todas as conhecidas mazelas das prisões brasileiras: superlotação, insalubridade e violência, entre outras.

Ao Correio, o juiz Paulo Irion e o advogado Pedro Surreaux falaram sobre suas experiências no dia a dia do sistema criminal. Para o magistrado, o fato de 40% dos 726.712 detidos do país serem provisórios, ou seja, ainda não julgados, evidencia que, em muitos casos, a aplicação da prisão preventiva tem desconsiderado princípios basilares do direito penal.

“O problema reside na interpretação acerca da não culpabilidade prévia, que é princípio de índole constitucional, bem como em uma ideia de imediatismo na aplicação do direito penal”, afirmou o juiz. “No momento em que o percentual de presos cautelares varia, já há algum tempo, entre 35% e 40% do total de presos, forçoso concluir-se que tais números são demasiados, evidenciando que, em alguns casos, a prisão antes da condenação tem sido utilizada de forma que não se coaduna com os ditames da presunção de inocência”, acrescentou.

Para ele, a prisão preventiva é corretamente aplicada quando “restrita a acautelar a regularidade da instrução criminal ou de um futuro processo de execução penal”. Na opinião dele, também contribui para o elevado índice de presos provisórios no país “o pensamento comum de que somente há punição com o aprisionamento”.

O caso citado por Paulo Irion nas redes sociais se refere a Paulo Renato Peixoto da Silva. Ele era acusado de participação numa tentativa de homicídio qualificado, em Porto Alegre, com o uso de arma de fogo, e também de corrupção de menores para o cometimento do mesmo crime. A vítima era um morador de rua.

Durante o processo, a defesa apresentou vários pedidos de liberdade, todos indeferidos. Em 18 de junho, após 681 dias de espera, ele foi a julgamento no Tribunal do Júri, presidido pelo juiz Paulo Irion, sendo absolvido a pedido do Ministério Público, que alegou insuficiência de provas.

Outro caso de morosidade processual foi o do réu Rodrigo Odelmo Henig. Ele foi acusado de homicídio qualificado. A prisão preventiva foi decretada em 2006, mas ele só foi localizado e detido em 2016. Desde então, permaneceu detido até ser absolvido em 15 de abril deste ano, apesar de o Ministério Público ter pedido sua condenação. Ao todo, foram 1.021 dias atrás das grades.

“Absurdo”

Por sua vez, o advogado Pedro Surreaux citou o caso de Thiago Lemes Freitas. O MP o denunciou  por tráfico de drogas, homicídio de rivais e lavagem de dinheiro. Casado e sem filhos, Thiago Freitas está preso na Cadeia Pública de Porto Alegre, que está superlotada, com mais de cinco mil detentos. Em 18 de junho, quando Pedro Surreaux comentou o post do juiz Paulo Irion, o cliente dele estava havia 1.092 dias preso, ou seja, quase três anos.

“Eu classifico a situação do réu como absurda, ilegal e inconstitucional”, criticou o advogado, observando que ninguém pode ficar preso mais tempo do que determinam os artigos 647 e 648 do Código de Processo Penal. “É inconstitucional, porque a Constituição condiciona que o réu deve ter direito a um julgamento em prazo razoável; é absurda, porque o réu é primário, embora responda a outros processos, e se encontra preso desde 21 de julho de 2016, sem prisão em flagrante”, emendou.

Ele apontou, entre as causas da lentidão processual nas varas criminais, a falta de pessoal e de infraestrutura; o excesso de trabalho de juízes, promotores e servidores da Justiça; e “o acúmulo de processos que são, literalmente, jogados na mesa dos magistrados”.

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O que diz o CNJ

14/07/2019

 

 

 

 

Responsável por executar o planejamento estratégico do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), respondeu, por meio de nota, que “a questão das prisões provisórias é um dos focos de ação do Justiça Presente, parceria entre o CNJ, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública para enfrentar a crise prisional brasileira”. O comunicado prossegue: “Um dos eixos do programa é voltado à redução da superlotação e da superpopulação carcerária, o que inclui ações para a redução do número de prisões provisórias”.

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Corregedoria minimiza atrasos

14/07/2019

 

 

 

O juiz-corregedor do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), André Vorraber Costa, explicou que os procedimentos adotados pela Corte se baseiam no sistema judicial brasileiro. Segundo ele, nos processos relacionados a homicídios, em razão de sua natureza, eventuais atrasos podem ocorrer para a realização dos julgamentos dos réus.

“Os processos com pessoas presas são priorizados por magistrados e servidores, recebendo marcações especiais para identificá-los. Nas Varas do Júri, onde tramitam os processos por homicídio, costuma haver considerável número de processos com réus presos, por conta da natureza dos casos. Assim, apesar da priorização, eventuais atrasos podem ocorrer”, disse o magistrado. “No caso específico do Tribunal do Júri, a Súmula nº 21 do Superior Tribunal de Justiça prevê que ‘pronunciado o réu, fica superada a alegação do constrangimento ilegal da prisão por excesso de prazo na instrução’. Ou seja, depois que é prolatada a decisão que determina o julgamento pelo júri, chamada decisão de Pronúncia, resta, em regra, superado o eventual excesso de prazo”, acrescentou.

Vorraber Costa ressaltou que a legislação permite a interposição de vários tipos de recursos, em diversas instâncias, o que também pode levar ao alargamento do tempo de prisão provisória. “Outra situação que pode contribuir para a morosidade de processos versando crimes violentos ou praticados por organizações criminosas é a dificuldade de se realizar a instrução processual. Em muitos casos, é difícil localizar as testemunhas, sendo comum a falta de comparecimento às audiências. Em resumo, essas podem ser consideradas as principais causas de atrasos em processos criminais da competência do Tribunal do Júri.”

Ele afirmou que, com o objetivo de reduzir essas dificuldades, o TJRS adotou algumas medidas, como a reestruturação do sistema de videoconferência, que já atende a todas as Comarcas do estado e a algumas casas prisionais.

Outra medida foi a instalação de mais duas Varas do Júri em Porto Alegre. “A primeira já está em funcionamento. A segunda, aguarda autorização do Conselho Nacional de Justiça para ser instalada, sendo que concentrará os processos por feminicídio”, ressaltou.

O magistrado destacou também a regulamentação das audiências de custódia em todas as Comarcas do estado. Acrescentou que o TJRS tem concentrado esforços para a digitalização dos processos, “medida que contribuirá sobremaneira para a agilidade da prestação jurisdicional”. (JV)

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Duas perguntas para Paulo Irion, juiz de direito do 1º Juizado da 3ª Vara do Júri do TJRS

14/07/2019

 

 

 

O senhor participou de mutirões carcerários do Conselho Nacional de Justiça em vários estados. Quais foram suas constatações?

Tomo conhecimento de situações concretas de pessoas presas sem condenação por tempo considerável. Na jurisdição da vara do júri, tenho reexaminado algumas situações e, em alguns casos, devido à demora da prisão sem julgamento, tenho determinado o relaxamento da prisão. Em mutirões carcerários, depara-se, segundo constam em relatório, com situações de prisões preventivas longas em diversos estados do Brasil.

Sobre o réu Rodrigo Odelmo Henig, como definiria a experiência dele, de ter ficado 1.021 dias aguardando julgamento e ter sido inocentado?

Deve ser terrível, já que é de conhecimento geral a caótica situação do sistema prisional em todo o Brasil, diante do problema da superpopulação carcerária e suas consequências. Assim, ficar preso nessas condições e depois ser absolvido pelos representantes da sociedade deve trazer uma sensação de ter sido vítima de uma brutal injustiça, pois o tempo de aprisionamento nunca poderá ser restituído, bem como suas consequências jamais serão apagadas.