Valor econômico, v.20, n.4746, 09/05/2019. Política, p. A9

 

Decreto libera porte de arma para políticos e caminhoneiros 

Raphael Di Cunto

Isadora Peron

Carla Araújo

Marcelo Ribeiro 

09/06/2019

 

 

Publicado ontem no "Diário Oficial da União", o decreto do presidente Jair Bolsonaro para flexibilizar o porte de arma de fogo foi bem mais amplo que o inicialmente divulgado pelo governo e causou polêmica com o Congresso e especialistas. Bolsonaro autorizou que várias categorias profissionais andem armadas nas ruas, como políticos eleitos, caminhoneiros, advogados e jornalistas, liberou a compra de armamento de potência mais alta, até então restritos a policiais e o Exército, e permitiu que crianças e adolescentes pratiquem tiro em clubes sem autorização judicial - basta o aval de um dos responsáveis.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, passou a tarde de terça-feira no Palácio do Planalto negociando o texto, mas sinalizou ontem que foi voto vencido na versão final do decreto e que o porte de armas "não é uma política de segurança pública". "A flexibilização da posse e porte é política do presidente da República e corresponde a uma promessa eleitoral. O presidente falou que não é política de segurança pública, mas que visa a atender aos anseios de parte de seus eleitores de uma flexibilização da política", disse Moro, que classificou como normais "divergências" dentro do governo.

O ministro disse, porém, que o decreto impõe limites à compra de armas pela população. "Acho que tem medidas extremamente relevantes, como a menção de cassar o porte e posse de quem enveredou para o caminho do crime, a questão do domínio rural parece uma questão razoável. Não é um decreto que simplesmente libera por completo, existem requisitos", disse.

O decreto ainda acaba com o monopólio da Taurus, ao permitir a importação de armas mesmos se houver modelos similares fabricados no Brasil. Apesar disso, o presidente disse que conversou com o ministro da Economia, Paulo Guedes, para que a indústria nacional não seja prejudicada. "Falei com Guedes para tratarmos da questão de impostos sobre as armas importadas, para que não sejam mais baratas que as nacionais. Objetivo não é criar barreira para a importação, mas não queremos prejudicar a indústria nacional", disse.

Partidos de oposição e até que votam junto com o governo rotineiramente, como o Cidadania, decidiram ingressar no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o decreto, que na opinião deles é inconstitucional porque iria além da regulamentação do Estatuto do Desarmamento e confrontaria a lei, juridicamente superior ao decreto. O Psol apresentou um projeto de decreto legislativo para revogar o decreto - o que depende de votação nos plenários da Câmara e do Senado. Dentro do governo, avalia-se questionar a capacidade de o Congresso de sustar os decretos caso essa iniciativa avance.

A principal crítica é liberar o porte de armas para 18 categorias profissionais sem que precisem justificar "efetiva necessidade", o que é exigido hoje. Ainda será necessário cumprir outros requisitos: ter no mínimo 25 anos, não possuir antecedentes criminais e comprovar capacidade técnica e psicológica.

Os favoráveis defendem que a decisão dependia do humor de delegados da Polícia Federal e que havia rejeições injustificadas. Já os contrários questionaram que a liberação provocará mais mortes e cabia ao Legislativo decidir. Um dos exemplos é que os agentes de trânsito, uma das profissões que terá direito pelo decreto, teve o porte aprovado pelo Congresso, mas vetado pelo ex-presidente Michel Temer.

O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), evitou se posicionar antecipadamente e pediu à consultoria legislativa um estudo sobre a constitucionalidade do decreto e se ele "não avança nas prerrogativas que são do Poder Legislativo". Ele lembrou, porém, que Bolsonaro foi eleito com a agenda de flexibilização das armas.

O presidente atropelou negociação com o próprio Maia e liberou a posse de arma dentro de toda a extensão da propriedade rural - projeto que Maia tinha pautado no plenário da Câmara.

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Para juristas, alterações só poderiam ser feitas por lei

Zinia Baeta 

Laura Ignacio

09/05/2019

 

 

O Decreto nº 9.785, que trata do registro, posse e porte de armas de fogo no Brasil, publicado hoje pelo presidente Jair Bolsonaro, é considerado ilegal e inconstitucional por especialistas.

Para juristas, o decreto cria previsões que estão além do que estipula o Estatuto do Desarmamento - Lei nº 10.826, de 2003. Por esse motivo, tais alterações só poderiam ser feitas por lei.

"O presidente está alterando uma política pública e a finalidade do Estatuto do Desarmamento por meio de um decreto, quando o correto seria a discussão passar pelo Congresso", afirma o doutor em direito constitucional e professor do IDP em Brasília, Ademar Borges. Ele acrescenta que o Estatuto do Desarmamento, como o próprio nome indica, tem o claro objetivo de reduzir o número de armas no Brasil, e o decreto faz justamente o oposto.

A mesma ideia é compartilhada pelo advogado criminalista Eduardo Reale. "Uma ampliação do que consta do estatuto teria que ser feita por meio de outra lei", afirma. "Além do mais, o governo federal estimula o uso de armas, sem prever como isso seria fiscalizado. E sabemos que a estrutura para isso é inexistente."

Para Ricardo Maffeis, do Siqueira Castro Advogados, é importante que isso fosse feito por meio de lei porque é no Congresso Nacional que são feitos os debates públicos, com a participação da sociedade. "Já tivemos até plebiscito sobre o tema, de modo que mudar via decreto, sem nenhuma discussão com a sociedade, não é o ideal."

O criminalista Renato Vieira, mestre em direito constitucional e processual penal e sócio do Kehdi e Vieira Advogados, afirma haver clara inconstitucionalidade no decreto, ao inovar em matéria que deve ser objeto de previsão específica da lei. O artigo 6º da Lei 10.826, por exemplo, estabelece situações de proibição de porte de arma de fogo no território nacional, e só admite exceção em caso de legislação própria. "O Decreto 9.785, no artigo 20, caminha na lógica da permissão para pessoas que não se enquadravam na exceção à proibição prevista na lei." Estão entre elas os oficiais de justiça, advogados, profissional de imprensa que atue em cobertura policial e agentes de trânsito.

Além disso, acrescenta, chega-se ao ponto de se alterar a política criminal vigente. Para ele, se antes a área de segurança pública era a responsável por autorizar o porte de armas, pelo decreto não há qualquer vínculo entre a segurança pública e a autorização para portar arma.

O professor de criminologia da USP Mauricio Dieter entende que o decreto traz clara violação às competências do Poder Legislativo pelo Poder Executivo. "Por meio do decreto, o Executivo transforma a regulamentação em um ato arbitrário, o que significa a violação da lei para a realização de um ato de vontade".

O professor ainda reflete sobre o impacto da nova norma sobre a segurança pública, provocando outras ilegalidades. "Temos um problema grave no Brasil, que são policiais militares fazendo bico de segurança. Com a permissão de porte de arma para soldados e cabos das Forças Armadas, isso pode se multiplicar."

O mesmo efeito pode decorrer da ampliação da possibilidade de compra de mil cartuchos por ano para uso pessoal, segundo o especialista em direito penal. "Certamente, com o fim do atual governo, essa medida será alterada e se tornará ilegal, o que deverá despejar milhares de cartuchos no mercado negro de armas", diz Dieter.

A extensão do conceito de residência também é criticado pelo advogado. "Antes, pessoa comum podia ter porte dentro da residência, para se proteger. Agora isso vale para toda a extensão do imóvel, autorizando que a pessoa circule por toda propriedade armado", afirma.