O globo, n.31434, 30/08/2019. Opinião, p. 03

 

Fábrica de crises 

Flávia Oliveira

30/08/2019

 

 

A economia brasileira cresceu 0,4% no segundo trimestre, o dobro da projeção dos especialistas, em sentido inverso ao apontado no Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br), tido como prévia do PIB oficial, a cargo do IBGE. O país deveria estar celebrando a expansão assentada nas indústrias de transformação e construção; o avanço do setor de serviços; a retomada do investimento produtivo; o vigor no consumo das famílias. Mas o que se via ontem eram agentes econômicos ressabiados com os indicadores antecedentes do terceiro trimestre, preocupados com a alta persistente do dólar no oceano de turbulência global, assombrados pelos impactos da Amazônia em chamas na imagem externa da nação. O Brasil, em vez de fábrica de crescimento, tornou-se linha de produção de crises.

Não foi por falta de aviso que a reputação internacional do país minguou. Ética empresarial e responsabilidade socioambiental são ativos que passaram a integrar o rol de exigências do mundo corporativo. Quem achou que ética, transparência e combate à corrupção no mundo dos negócios eram agenda exclusiva do Brasil lavajatista estava cochilando quando empresas e instituições foram punidas por malfeitos e obrigadas a se enquadrarem.

A gigante Volkswagen, no ano passado, foi multada em 1 bilhão de euros na Alemanha por fraudes em veículos a diesel. Em 2017, a companhia assinara acordo de US$ 4,3 bilhões com autoridades americanas para pôr fim a ações civis e criminais relacionadas ao chamado Dieselgate. Um software instalado em 11 milhões de automóveis alterava o resultado das emissões de poluentes. Foi o maior escândalo da história da montadora, que chegou a separar 30 bilhões de euros para lidar com o episódio.

A Petrobras, por causa da Lava-Jato, fechou acordo de US$ 3,8 bilhões com acionistas estrangeiros, Justiça dos EUA, órgão regulador do mercado americano e governo brasileiro. Pela tragédia humana e ambiental em Brumadinho, a Vale registrou prejuízo de R$ 6,4 bilhões no primeiro trimestre e de R$ 384 milhões no segundo. Nas demonstrações financeiras de abril a junho, a mineradora separou R$ 5,9 bilhões para despesas com o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, há sete meses, que deixou 248 mortos e 22 pessoas ainda desaparecidas. O desastre afetou a produção da companhia e levou junto os resultados da indústria extrativa no PIB brasileiro. No primeiro trimestre, derrubado pela produção de minério de ferro, o setor despencou 6,3%, segundo o IBGE.

P oressas e outras, era evidente que o descuido deliberado coma Amazônia chamuscaria a reputação do Brasil, até então, respeitado e cobrado coma mesma intensidade na agenda de proteção ao meio ambiente e redução das emissões de gases do efeito estufa. O governo do presidente Jair Bolsonaro errou no discurso e nos atos relacionados à floresta. Agora, paga preço alto, expresso na comoção global nas redes sociais, na mobilização de chefes de Estado enas retaliações espontâneas dos consumidores de produtos brasileiros, em particular, soja, carne bovina e couro.

Enquanto governos europeus, França à frente, ameaçam o Brasil em negociações comerciais, caso do acordo Mercosul-União Europeia, importadores já anunciam suspensão de compras. Dona das marcas Kipling, Timberland e Vans, a VF Corporation avisou que deixará de usar o couro brasileiro em seus produtos até que haja segurança de que a matéria-prima não provoca dano ambiental no país. A norueguesa Mowi, maior produtora mundial de salmão, avisou que vai procurar outros produtores de soja, se o Brasil não coibir o desmatamento.

Desde que as queimadas na Região Norte se intensificaram, ganhou força um movimento de boicote a produtos brasileiros no exterior. São iniciativas gestadas por bem-vindas campanhas de consumo consciente e anabolizadas por interesses políticos e concorrenciais. Esta semana, no jornal britânico “Guardian”, Lucy Siegle, jornalista de sustentabilidade, assinou artigo vinculando a indústria brasileira do couro às queimadas na Amazônia: “Nossa demanda por sapatos, cintos e bolsas está levando à destruição da floresta tropical. Chegou a hora de os consumidores acordarem”, escreveu. É um tipo de convocação que ameaça o projeto de recuperação econômica do país, cujo PIB patina há meia década. E pode arrastar para o limbo justos pecadores da atividade empresarial. Remediar custa sempre mais caro que prevenir.