O globo, n.31433, 29/08/2019. Artigos, p. 02

 

Criatividade da Segundona 

Merval Pereira 

29/08/2019

 

 

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal exerceu o direito de errar por último, como Rui Barbosa definiu ser prerrogativa do STF. Mas o Supremo é composto por 11 ministros, 11 ilhas, na definição de Sepúlveda Pertence, “Os onze” retratados com maestria pelo livro desse nome dos jornalistas Felipe Recondo e Luiz Weber.

Portanto, os três votos que inovaram a interpretação da lei para anular o primeiro julgamento da Lava-Jato, usando uma criatividade que até o momento era atribuída apenas ao “Direito de Curitiba”, na expressão jocosa do ministro Gilmar Mendes, não representam a opinião do pleno, e em algum momento o caso deverá ser enfrentado pelo conjunto do Supremo.

Ou então a própria Segunda Turma, diante da má repercussão da medida na opinião pública, pode explicitar no acórdão que os efeitos da decisão só se produzem nos processos posteriores, não tendo efeito retroativo para os casos em que a defesa não alegou cerceamento em recurso ainda na primeira instância.

Essa interpretação de que os réus delatores são parte da acusação, e por isso o réu delatado deve ter o direito de se defender por último, deve servir para basear pedidos de anulação de uma série de processos, pois nunca os juízes separaram delatores e delatados, sempre considerados réus igualmente.

A anulação com base nessa nova interpretação da Segunda Turma, porém, só seria possível em situações como adeBen dine, em que a defesa dos réus pediu que falassem depois dos delatores. Os que assim fizeram, antes da primeira condenação, tiveram seus recursos negados pelo juiz de primeira instância, pelo TRF-4 e pelo STJ, e agora podem ser beneficiados.

Como salientei ontem, o advogado Cristiano Zanin não fez esse recurso no julgamento de primeira instância nos dois julgamentos em que Lula foi condenado, o do tríplex, e o do sítio de Atibaia, mas tenta se aproveitar da nova interpretação no julgamento em curso do processo sobre o terreno do Instituto Lula dado pela Odebrecht.

A decisão do juiz Luiz Antonio Bonat ainda não foi divulgada mas, como de praxe, ele deu aos réus o mesmo prazo, fossem delatores ou não. Como o julgamento não terminou na primeira instância, basta que o juiz que substituiu Moro siga anova instrução do Supremo, refazendo essa parte do processo, concedendo à defesa de Lula o direito de sera última afalar.

A única possibilidade de que a decisão da Segunda Turma atinja a todos os condenados seria mais uma interpretação criativa. Devido à controvérsia que a decisão causou, era provável que o recurso da Procuradoria-Geral da República fosse encaminhado pelo relator da Lava-Jato, ministro Edson Fachin, para decisão do plenário do Supremo. Foi o que ele fez, ontem à noite, usando outro processo.

Será a única maneira de esclarecer se essa criatividade jurídica conta com o respaldo da maioria do STF. Se a Segunda Turma receber o recurso, dificilmente o resultado será diferente. Pode até ser que a ministra Cármen Lúcia, que surpreendeu a todos votando junto com Gilmar Mendes e Lewandowski, defenda ate sede que a decisão se restringe ao caso de Bendini. Os dois outros terão interpretação diferente, provavelmente, e o resultado será um empate de 2 a 2, que beneficiara o réu.

O ministro Celso de Mello está internado, e provavelmente não retornará ao trabalho tão cedo. A defesa de Lula pode se aproveitar dessa baixa na Segunda Turma para apresentar o recurso, alargando sua interpretação. Estaéa primeira grande derrota da Operação Lava-Jato no Supremo, pois resultou na anulação de uma condenação.

As outras derrotas, como o fim da condução coercitiva, ou a contenção da prisão preventiva, foram superadas na prática do dia adia. Agora, depois da divulgação de diálogos entre Sergio Moro e Dallagnol, e entre os procuradores de Curitiba entre si, foram revelados detalhes pessoais dos investigadores que reforçaram uma rejeição que já havia latente em muitos dos ministros do Supremo, e expressada por outros, sendo o mais contundente o ministro Gilmar Mendes.

Mesmo que as conversas não revelem nenhuma irregularidade jurídica nas decisões tomadas, mostram uma faceta nada edificante das investigações. São questões morais que não deveriam interferir no julgamento, mas interferem. Muitos atribuem a esse incômodo o voto da ministra Cármen Lúcia.