Correio braziliense, n. 20511, 18/07/2019. Política, p. 2

 

Procuradores tensos com decisão de Toffoli

Renato Souza

Jorge Vasconcellos

18/07/2019

 

 

Justiça » A determinação do presidente do STF de suspender investigações e processos que usam informações do Coaf é vista como prejudicial ao combate à corrupção. Chefe da PGR, Raquel Dodge se diz preocupada, assim como integrantes da Lava-Jato

A decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, de suspender investigações e processos, em todo o país, que utilizem informações compartilhadas do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), do Banco Central e da Receita Federal causa preocupação entre procuradores. A tensão ficou tão elevada que a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu à sua equipe para fazer um levantamento sobre o impacto que a determinação vai provocar em ações em curso no Poder Judiciário em todas as unidades da Federação.

“A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, vê com preocupação a decisão que suspendeu investigações e processos instaurados a partir do compartilhamento de informações fiscais e bancárias com o Ministério Público”, diz a nota da Procuradoria-Geral da República. “A PGR já determinou que a sua equipe analise os impactos e a extensão da medida liminar para definir providências no sentido de se evitar qualquer ameaça a investigações em curso.”

Ao atender o pedido dos advogados de Flávio Bolsonaro, Toffoli determinou que continuem em curso apenas ações que tenham obtido autorização judicial para utilizar dados financeiros detalhados de contribuintes. Ele se baseou em um recurso, com repercussão geral reconhecida (tema de grande relevância), que trata do “compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pela Receita Federal no legítimo exercício de seu dever de fiscalizar, sem autorização prévia do Poder Judiciário”. Em novembro deste ano, os integrantes da Corte devem avaliar se é constitucional a troca desses dados sem autorização judicial. Até lá, pela decisão de Toffoli, todas as ações sobre o tema ficam suspensas.

A medida também gerou forte reação da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). A diretoria da entidade declarou que o entendimento do ministro prejudica as investigações contra o crime organizado e mesmo ações terroristas. “O tema do compartilhamento de dados sigilosos entre órgãos de controle (Receita Federal, Banco Central e Coaf) foi objeto de inúmeras decisões judiciais, inclusive do STF, e a própria literatura anticrime internacional aborda o assunto por meio de uma série de recomendações”, afirma um trecho do comunicado. “Em todos esses fóruns, sempre foi predominante o entendimento de que o compartilhamento de informações, entre órgãos fiscalizatórios e investigatórios, não necessita de autorização judicial. A mudança desse procedimento, em decisão monocrática do ministro Dias Toffoli, prejudicará, sobremaneira, a investigação e a punição de delitos graves, como narcotráfico, organizações criminosas, financiamento do terrorismo e crimes transfronteiriços.”

A ANPR também demonstrou apreensão com a contraposição de recomendações internacionais, como a do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo (Gafi/FATF), que reúne 35 países e orienta o compartilhamento das informações sobre crimes financeiros sem a necessidade de aval da Justiça. A entidade também destaca a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, que “impõe ao Brasil que garanta às autoridades responsáveis pelo combate à lavagem de dinheiro a capacidade de cooperar e trocar informações em âmbito nacional e internacional”.

As forças-tarefas da Operação Lava-Jato em São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro, além dos integrantes da Greenfield — responsáveis pela investigação de diversos casos suspeitos e comprovados de lavagem de dinheiro e evasão de divisas —, também reiteraram o prejuízo para o combate ao crime organizado a suspensão das ações em curso. “Embora seja inviável identificar imediatamente quantos dos milhares de procedimentos e processos em curso nas forças-tarefas podem ser impactados pela decisão do STF, esta impactará muitos casos que apuram corrupção e lavagem de dinheiro nas grandes investigações e no país, criando risco à segurança jurídica do trabalho”, informaram em nota.

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), onde correm as diligências contra Flávio Bolsonaro, solicitou ao Supremo participação no julgamento que vai decidir sobre a constitucionalidade do compartilhamento de dados para fins criminais. No documento, o órgão alega que “a controvérsia discutida nos autos, e o próprio teor do ato decisório, pode impactar processos e investigações em curso no Parquet fluminense”.

Depósitos

Flávio Bolsonaro é investigado por movimentações financeiras atípicas em sua conta bancária. De acordo com o Coaf, o parlamentar recebeu 48 depósitos entre junho e julho de 2017, num valor total de R$ 96 mil. As informações foram usadas pelo Ministério Público do Rio para abrir investigação contra o senador e seu ex-assessor Fabrício Queiroz. No documento enviado ao Supremo, os advogados do parlamentar argumentam que ele teve o sigilo fiscal e bancário quebrado ilicitamente.

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Nova esquerda pede passagem

Luiz Carlos Azedo

18/07/2019

 

 

O presidente do PDT, Carlos Lupi, anunciou ontem a suspensão dos oito deputados que votaram a favor da reforma da Previdência contra a orientação do partido: Alex Santana (BA), Flávio Nogueira (PI), Gil Cutrim (MA), Jesus Sérgio (AC), Marlon Santos (RS), Silvia Cristina (RO), Subtenente Gonzaga (MG) e Tabata Amaral (SP). Todos desafiaram os caciques da legenda, inclusive o ex-governador Ciro Gomes, que exigiu punição dos rebeldes em caráter pedagógico. Segundo ele, os deputados não podem servir a dois senhores, numa referência aos movimentos Acredito e RenovaBR, dos quais fazem parte.

Esses parlamentares são alinhados ao programa de renovação política de alguns movimentos aos quais estão ligados, como Acredito e RenovaBR, antes mesmo de terem se filiado à legenda. É o caso da jovem deputada Tabata Amaral, uma estrela em ascensão na política nacional, que escolheu o PDT como legenda por lhe oferecer melhores condições do que o Cidadania e a Rede para disputar uma vaga de deputada federal por São Paulo. É jogo jogado, ninguém foi enganado.

O comentário de Ciro Gomes lembra a famosa polêmica que deu origem ao “centralismo democrático”dos partidos comunistas, entre o líder bolchevique Vladimir Lênin e o social-democrata Julius Matov, na fundação do Partido Socialista Operário Russo (PSOR), em 1902. Martov era um importante líder da União Geral dos Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia, que havia aderido aos bolcheviques. Pretendia manter sua organização, mas foi impedido por Lênin, que proibiu a dupla militância com o argumento de que um partido revolucionário não poderia abrir mão de um “centro único” dirigente.

Curiosamente, no Brasil, o antigo PCB, que mudou para PPS e, agora Cidadania, aboliu o centralismo democrático e se tornou uma Babel de tendências políticas, o que se reflete no posicionamento contraditório da bancada em relação ao governo Bolsonaro. Entretanto, seus oito deputados votaram unidos a favor da reforma da Previdência e agora abrem as portas da legenda para os dissidentes do PDT, acusados de serem neoliberais. Outras siglas, como o Novo e a própria Rede, também disputam corações e mentes desses dissidentes.

Entretanto, pode ser que estejamos presenciando um outro fenômeno: a gênese de uma nova esquerda, em ruptura com a esquerda tradicional, da qual o PDT e o PSB fazem parte, como partidos mais moderados do que o PT e o PSol, por exemplo. É preciso atenção também para os 11 dissidentes do PSB, contra os quais o presidente do Conselho de Ética da legenda, Alexandre Navarro, abriu um processo disciplinar.

Os deputados Átila Lira (PI), Emidinho Madeira (MG), Felipe Carreras (PE), Felipe Rigoni (ES), Jefferson Campos (SP), Liziane Bayer (RS), Luiz Flávio Gomes (SP), Rodrigo Agostinho(SP), Rodrigo Coelho (SC), Rosana Valle (SP) e Ted Conti (ES) também votaram a favor da reforma da Previdência, contrariando a orientação da direção do PSB, cujo eixo dominante é o clã Arraes, em Pernambuco. A maioria também faz parte dos movimentos Acredito e Renova BR.

Fundo eleitoral

Somados, esses 19 deputados podem protagonizar a emergência de uma nova esquerda no Congresso, de caráter democrático e liberal, sem o viés nacionalista e socialista que caracteriza historicamente a esquerda brasileira. A agenda desses parlamentares, na verdade, está em choque com os programas e as estruturas partidárias das quais fazem parte. Democracia interna, ética, diversidade, pluralismo e transparência são valores dessa nova esquerda que nasce, sem os dogmas dos movimentos nacional-libertadores e socialistas. Falta-lhes um partido que ofereça essa possibilidade.

Obviamente, tanto o PDT como o PSB não têm nenhum interesse em que haja esse descolamento, por vários motivos, entre, os quais o impacto que isso pode vir a ter no fundo eleitoral das duas legendas (os deputados carregam os recursos para onde forem). Por isso mesmo, não haverá expulsão. Se esses deputados deixarem o partido por causa do constrangimento que estão passando, os suplentes poderão pleitear as suas respectivas vagas na Justiça Eleitoral.

Até nova janela partidária, no próximo ano, haverá tensão entre os deputados dissidentes e as cúpulas partidárias. Pode ser até que haja alguma acomodação, em razão dos interesses regionais, que foram determinantes para a presença desses deputados nas respectivas legendas. O mais relevante, entretanto, é que a votação da reforma da Previdência revelou um choque de concepções entre o velho e novo nesses partidos de esquerda. Um choque que vai se reproduzir em outras votações, em razão da agenda de modernização da economia e reforma do Estado.

Esse choque não se resolve em termos de um conflito de gerações, que ele também reflete, mas dentro de cada geração. Esse é o fato novo do processo: no bojo da renovação promovida pelo tsunami eleitoral de 2018, uma nova esquerda germinou. Ela agora ganha sua própria cara no Congresso, assim como existe também uma nova direita, mais democrática e reformadora que os setores reacionários que defendem uma agenda regressista em relação aos costumes, à educação, aos direitos humanos, à saúde e à segurança pública. Mas essa já é outra história.