O Estado de São Paulo, n. 46049, 15/11/2019. Internacional, p. A16

 

Brics ignora América Latina em declaração final

Camila Turtelli

Felipe Frazão

Lorenna Rodrigues

Mateus Vargas

15/11/2019

 

 

Divergências entre Brasil e demais países do bloco, especialmente sobre a crise na Venezuela, impediu consenso sobre tema

Cúpula. Líderes do Brics em Brasília; Brasil é o único a reconhecer Juan Guaidó na Venezuela

Os países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) ignoraram as crises políticas na América Latina na declaração final da cúpula que terminou ontem em Brasília. No documento negociado pelos cinco líderes, há um capítulo que menciona “conjunturas regionais”, onde teria sido possível incluir a questão.

Apesar de esforços do governo Jair Bolsonaro para sensibilizar Xi Jinping (China), Vladimir Putin (Rússia), Narendra Modi (Índia) e Cyril Ramaphosa (África do Sul), há divergências entre o Brasil e os demais membros do bloco, principalmente no caso da crise política da Venezuela.

Na declaração final, são dedicados parágrafos inteiros para tratar dos conflitos no Oriente Médio, Ásia e África, entre eles, no Iêmen, Golfo Pérsico, Afeganistão, Península Coreana, Síria, Líbia e Sudão. Em geral, o Brics apoia esforços de ajuda humanitária e rechaça intervenções militares. O bloco trata também da questão palestina e defende a solução de dois Estados. No entanto, a convulsão social venezuelana foi deixada de fora.

Divisões. O principal motivo é que o Brasil é o único do Brics a trabalhar contra Nicolás Maduro e a reconhecer Juan Guaidó como o presidente legítimo. Também era o único país a interpretar como processo democrático a queda de Evo Morales na Bolívia – até ontem, quando o governo da Rússia reconheceu Jeanine Áñez como presidente interina.

Já a crise venezuelana continua dividindo o bloco. Enquanto Bolsonaro reconhece o opositor Juan Guaidó como presidente interino e faz oposição ao regime chavista, China, Rússia, Índia e África do Sul veem como legítima a eleição do presidente Nicolás Maduro, em maio de 2018.

A China é uma das principais fontes de receita do governo chavista e já teria investido cerca de US$ 60 bilhões, desde os anos 2000, em empréstimos vinculados a contratos de compra de petróleo, financiamentos e parcerias. Os chineses são os maiores importadores de petróleo do mundo e a Venezuela, embora tenha uma produção combalida, é um fornecedor do produto.

Parceria. A Rússia também funciona como tábua de salvação do chavismo. Desde 2010, a Rosneft, estatal russa do petróleo, já colocou US$ 9 bilhões na Venezuela. No último encontro com Maduro, Putin prometeu investir mais US$ 16,6 bilhões até o fim do ano. Como o governo venezuelano é alvo de sanções americanas – que restringem o acesso do país ao sistema financeiro global – aviões carregados de dólares costumam fazer o trajeto Moscou-Caracas.

De acordo com a Bloomberg, citando documentos da firma ImportGenius, entre maio de 2018 e abril de 2019, pelo menos US$ 315 milhões em notas de dólares e euros foram enviados em seis remessas da Rússia para a Venezuela.

Os projetos russos, porém, vão além do financiamento da burocracia venezuelana e afetam também um setor estratégico: o militar. O chavismo transformou-se em um cliente assíduo do Kremlin, comprando desde caças Sukhoi até um sofisticado e caro sistema de defesa antiaérea.

Os outros dois países do Brics também têm interesses na Venezuela. A Índia é um dos que mais consomem petróleo no mundo e precisa manter uma fonte diversificada de importadores. Em março, o país tornou-se o maior comprador de petróleo venezuelano. Houve uma interrupção na compra, retomada em outubro. Os indianos pagam em dinheiro, diferentemente de China e Rússia, que abatem das dívidas contraídas pelo chavismo.

No caso da África do Sul, a relação é ideológica. Durante a Guerra Fria, vários movimentos de resistência africana foram apoiados por regimes socialistas. Os ex-presidentes Nelson Mandela e Thabo Mbeki sempre foram gratos aos que defenderam a causa. Hugo Chávez soube expandir a ação, distribuindo petróleo na África em troca de apoio diplomático.

A DECLARAÇÃO

Soberania nacional e a Amazônia

O bloco se posicionou de forma inédita em defesa do princípio da soberania nacional. Além de uma menção conceitual ao tema, vinculada ao “respeito mútuo e igualdade”, os Brics afirmou a necessidade de os países respeitarem a soberania nos esforços para preservação ambiental, tema caro ao Brasil em razão das recentes queimadas na Amazônia, depois das quais a França falar em status internacional

Acordo de Paris

O bloco reafirmou compromisso com a implementação do Acordo de Paris, do qual os EUA saíram. Ressaltou que as responsabilidades devem ser adequadas às respectivas capacidades dos países e cobrou uma ampliação no financiamento e ajuda tecnológica por parte de nações desenvolvidas.

Multilateralismo

Documento reproduz o “comprometimento" das cinco economias emergentes com o sistema multilateral para resolução de conflitos internacionais e destaca o papel da ONU e da OMC diante do aumento do protecionismo. Os países do bloco pediram uma reforma urgente e “equilibrada" do sistema multilateral. incluindo o Conselho de Segurança da ONU e o FMI.

Terrorismo

Em matéria de segurança. a principal preocupação da cúpula foi  o avanço do terrorismo e do uso associado de tecnologias de informação e comunicação para cometer crimes. Os países querem trocar experiências no combate a crimes transnacionais, corrupção e meios de recuperação de ativos.