Correio braziliense, n. 20513, 20/07/2019. Política, p. 5

 

Fome no Brasil é mentira

Deborah Fortuna

Hamilton Ferrari

Ingrid Soares

Rodolfo Costa

20/07/2019

 

 

O presidente Jair Bolsonaro causou indignação ao afirmar ontem que “falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”. Para ele, “não se vê gente, mesmo pobre, pelas ruas, com físico esquelético”. As declarações foram dadas durante um café da manhã com jornalistas estrangeiros. Ele também chamou o Nordeste de “Paraíba” e provocou uma onda de críticas nas redes sociais (veja reportagem abaixo). 
Os números sobre a pobreza no país desmentem as afirmações do chefe do Palácio do Planalto. Dados do professor Marcelo Neri, diretor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Social, apontam que a miséria voltou a aumentar, assim como a desigualdade social.
A rápida repercussão não deu muitas alternativas a Bolsonaro além de recuar. Horas depois, ele atenuou as declarações. Em uma solenidade comemorativa ao Dia do Futebol, no Ministério da Cidadania, tentou se explicar ao dizer que o país é rico, com terras férteis e água em abundância. “Olha, o brasileiro come mal. O brasileiro come mal. Alguns passam fome”, admitiu. Questionado se a ponderação era um recuo da declaração anterior, ele alterou o tom. “Ah, pelo amor de Deus. Se for para entrar em detalhe, em filigrana, eu vou embora. Eu não estou vendo nenhum magro aqui, tá certo? Temos problemas alimentares no Brasil? Temos, não é culpa minha, vem de trás, estamos tentando resolver.”
Durante o café da manhã, o chefe do Executivo também criticou as medidas tomadas anteriormente no combate à fome, chamando-as de populistas. “O que nós temos que fazer, poderes Executivo e Legislativo, que em grande parte um depende do outro, é facilitar a vida do empreendedor, de quem quer produzir”, declarou. “E não fazer esse discurso voltado para a massa da população.” O evento foi transmitido ao vivo pelo Facebook.
Em série de reportagens sobre o Plano Real, o Correio mostrou que os ganhos sociais retrocederam depois da crise econômica e mais pessoas passaram a viver em situação de miséria. Em 2018, estudo feito pelo pesquisador Marcelo Neri, da FGV Social, mostrou que a pobreza atingiu 23,3 milhões de pessoas.
Por conta da crise econômica, agravada em 2014, o índice voltou a crescer fortemente. Só em 2015, a vulnerabilidade subiu 19,3% no Brasil, agregando mais 3,6 milhões de pessoas. É o caso de Tatiana de Oliveira Silva. Mãe de cinco filhos, aos 29 anos, já trabalhou em lavouras, reciclagem e como doméstica. Mineira de São Francisco, ela conta que chegou há três meses ao Distrito Federal em busca de uma vida melhor. Ela não tem com quem deixar as crianças e, há pelo menos cinco anos, está desempregada. Parou de estudar na 5ª série.
Enquanto os filhos mais velhos, de 12 e 10 anos, vão à escola, ela se divide nos cuidados da casa e dos filhos menores: Miguel, 5, Kaleb, 6, e Deivid, de 8 meses. Os sete e o cachorrinho de estimação da família compartilham três cômodos ainda mal-acabados, na casa sem pia e reboco e de chão irregular. Os poucos móveis, encontrados no lixo ou doados, somam apenas um sofá, três camas, um rack, uma TV de tubo antiga, um berço desmontável que serve de guarda-roupas, um fogão velho, um banco de palha e uns poucos talheres e panelas.
Em um deles, quatro crianças se dividem entre dois colchões de solteiro para dormir. O bebê fica na cama maior, com a mãe e o pai. O marido recebe cerca de R$ 1.200 com o serviço de servente que conseguiu recentemente. Também trabalhava com reciclagem. Entre as contas mensais, está o aluguel, no valor de R$ 150, além de água, luz e as compras do mês, que somam R$ 400.
As crianças quase não têm brinquedos, e a TV antiga não funciona por falta de um conversor digital. Tatiana também não sabe se o fogão velho e sem tampa que encontraram no lixo funciona, pois não teve dinheiro para comprar gás. A comida, quando tem, é feita na área externa da casa, em um fogão de lenha improvisado.
Os irmãos não veem uma fruta, iogurte ou um biscoito doce há dias. Quando questionado sobre o prato que a mãe faz que mais gosta de comer, Kaleb, o mais velho respondeu: “Macarrão instantâneo”. “A gente passa aperto direto. Falta alimento. Carne é uma vez só no mês, quando recebe. Esta semana mesmo, faltou feijão. Às vezes, falta o arroz. Às vezes, a gente recebe doações da igreja. É o que ajuda” disse Tatiana. “Mas o meu sonho é trabalhar de carteira assinada. O ruim é conseguir creche. Tentei escola para os outros dois maiores, mas não tem vaga aqui, e os dois que estudam percorrem um longo caminho a pé.”