O globo, n.31431, 27/08/2019. Mundo, p. 22

 

Estrago deve demorar para ser reparado 

Fernando Eichenberg 

Marina Gonçalves 

27/08/2019

 

 

A escalada verbal entre os líderes de Brasil e França alcançou um nível inédito na história da relação bilateral, na avaliação de especialistas ouvidos pelo GLOBO. O estrago diplomático levará meses para ser reparado, dizem, e isso se medidas forem adotadas para apaziguar as dissensões.

Para Bruno Cautrès, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), o presidente Jair Bolsonaro superou o presidente americano, seu mentor em posts polêmicos nas redes sociais:

— Não estou certo de que tenhamos visto algo comparável nas declarações de Trump. Também não penso ter visto algo de tão grave nas relações internacionais como as declarações de Bolsonaro sobre a primeira-dama Brigitte Macron. Creio que é algo bastante inédito na história das relações franco-brasileiras e também nas relações mais recentes entre países do G20, que normalmente são tensas. Será complicado ter uma relação normal entre os dois Executivos nos próximos seis ou oito meses. Estamos em meio a um grave acidente diplomático.

Segundo o analista Christian Lequesne, do Centro de Pesquisas Internacionais (CERI),a gota d’água para Macron foi a ofensa pessoal de Bolsonaro a sua mulher:

— Atacar a mulher de um presidente em relação a seu físico é um método bastante baixo. Quando se é um líder não se faz isso, não se ataca a mulher,mas ideias. Isso irritou bastante Macron. Há uma incompatibilidade entre os dois, mas é preciso que a França mantenha relações com o maior país da América Latina. Há comércio em jogo, e a posição do Brasil no cenário internacional conta. Mas o ataque pessoal de Bolsonaro à mulher de Macron não passou.

No aspecto político, a disputa alimentada pelo fogo na Amazônia pode ser analisada em um contexto mais amplo, diz Lequesne:

—Macron assume seu papel mundial em oposição ao crescimento geral do populismo. Poderia ter tratado os ataques de Bolsonaro com desprezo. Mas, ao dizer que o presidente não está à altura da função, assume o risco de comprometer a relação bilateral. Isso deixa marcas. E será preciso que os diplomatas, dos dois lados, tentem apaziguar a situação.

SUBMARINO, HOTÉIS

Cautrès analisa a estratégia de Macron também à luz do acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul:

—Para uma parte da opinião pública, é uma traição de Macron aos seus compromissos ambientais. Ele aproveitou os erros de Bolsonaro para tentar sair dessa armadilha — disse o analista do Sciences-Po, para quem “forçosamente haverá muita diplomacia nos próximos meses para tentar acalmar o jogo e encontrar um meio de simbolizar uma nova entente franco-brasileira”.

Embaixador brasileiro na França de 1997 a 2003, Marcos Azambuja acredita que Bolsonaro precisa dar o passo de pedir desculpas a Brigitte Macron.

—Cortesia de gestos e de palavras é importante. Pedir desculpas a uma senhora que você possa ter ofendido é necessário —afirmou.

Para Azambuja, “a longa e densa relação” entre Brasil e França deve ser preservada. Paris apoia a ampliação do Conselho de Segurança da ONU, incluindo um assento permanente para o Brasil. Há 890 empresas com ao menos 10% de capital acionário francês instaladas no Brasil.

— Há em andamento um grande programa de construção de submarinos com a França. O maior grupo hoteleiro do Brasil é francês e há uma grande presença de grupos automobilísticos franceses no país. A aposta no Brasil é muito grande. Há uma rede de interesses cruzados — enumera o diplomata, destacando que os desentendimentos recentes foram causados por “personalidade e temperamento”, além de “posições ideológicas” opostas. — Não podemos deixar que incidentes de percurso prejudiquem isso. Os interesses objetivos e reais são tão densos e diversificados que episódios como esses tendem a ser digeridos em médio prazo.

KaiKenkel,professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, também ressalta que a relação entre os dois países é maior do que os problemas conjunturais:

— Há uma percepção mundo afora de que o que aparece no Twitter de Bolsonaro tem que ser visto com um grão de sal.

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

França se isola com oposição a acordo com Mercosul

Rennan Setti

27/08/2019

 

 

Ao voltar a pôr em dúvida ontem a ratificação pela França do acordo de livre comércio entre União Europeia (UE) e Mercosul em reação à política do governo brasileiro para o meio ambiente, o presidente Emmanuel Macron pôs seu país em posição de isolamento entre seus pares europeus, que, embora critiquem a política ambiental de Jair Bolsonaro, sinalizaram apoio ao tratado durante o encontro do G7.

Alemanha, Reino Unido e Espanha, por exemplo, se disseram contrários à ameaça de Macron — em busca, segundo observadores, dos dividendos econômicos do tratado. Já o presidente francês, de acordo com especialistas, persegue uma estratégia que atende aos interesses do agronegócio de seu país e tenta fazer frente ao descontentamento do crescente eleitorado “verde” e dos “coletes amarelos”.

Para a francesa Célia Belin, pesquisadora visitante da Brookings Institutione especialista de relações transatlânticas, o sucesso de candidatos ecologistas nas eleições europeias e a crise dos coletes amarelos (que têm raízes no interior agrário) foram determinantes para que Macron elevasse o tom nas críticas à crise da Amazônia e se opusesse ao tratado. Esses fatores potencializaram uma posição francesa historicamente mais protecionista, observou. Esse posicionamento será instrumental para que Macron busque, na segunda metade do seu mandato, um equilíbrio maior na plataforma centrista que o elegeu, disse Célia.

—O argumento é que países que não respeitam o meio ambiente oferecem concorrência desleal ao setor agrícola francês, que é muito relevante, mas passa por dificuldades — explicou a cientista política.

Carolina Pavese, da PUCMG,explica que,caso a França não assine o acordo, isso não significa que o documento será rejeitado. Ele ficaria suspenso. Segundo Márcio Sette Fortes, professor de economia internacional do Ibmec-RJ, Alemanha e Reino Unido não aderiram ao discurso de Macron porque veem o acordo como peça fundamental de suas economias no futuro.

— A Alemanha está à beira de uma recessão e vem enfrentando um problema interno sobre o direcionamento de sua produção industrial. O mercado consumidor brasileiro não é nada desprezível — disse o economista.

—O Reino Unido sabe que precisará costurar um acordo próprio com o Mercosul para não ficar isolado depois do Brexit.

De toda forma, o Brasil deve se preparar para mais cobranças da UE em setembro, quando uma legislatura do Parlamento Europeu muito mais “verde”, eleita em maio, se reunirá pela primeira vez.

Para diplomatas, existe forte possibilidade de os europeus tentarem ganhar tempo. Pouco se conhece das minúcias do acordo. A previsão é que a avaliação legal se dê em um a dois anos. Somente depois, o entendimento seria submetido aos parlamentos do Mercosul. Na UE, o documento precisará ser aprovado pelos parlamentos dos 28 países , para só então ser submetido ao Conselho Europeu.

Em Brasília, o discurso de membros do governo é que mais preocupa a imagem do Brasil por causa das queimadas do que a possibilidade de rompimento do acordo entre Mercosul e UE. A avaliação em Brasília é que o mais provável é que o documento seja engavetado, para ser reaberto em um momento oportuno. Isso aconteceria se algum país da UE não assinasse o acordo.