O globo, n.31430, 26/08/2019. País, p. 04

 

Sem causa e consequência 

Bernardo Mello

26/08/2019

 

 

 Recorte capturado

 

 

AUMENTO DAS MORTES PELA POLÍCIA NEM SEMPRE ACOMPANHA QUEDA DE HOMICÍDIOS

O aumento das mortes decorrentes de intervenção policial segue dinâmicas distintas em comparação com os assassinatos totais. Dados de secretarias de Segurança Pública de 14 estados e do Distrito Federal mostram que o avanço dos chamados autos de resistência nem sempre é acompanhado por quedas no número de mortes violentas — estatística que inclui homicídios dolosos, latrocínios e lesão corporal seguida de morte.

O discurso de que o aumento da repressão policial letal gera necessariamente aquedada criminalidade vem sendo defendido mais abertamente por políticos desde a eleição do ano passado. De 15 unidades da federação analisadas pelo GLOBO, em nove houve crescimento dos casos na comparação entre janeiro e abril de 2018 e de 2019.

Os números mostram, contudo, que em seis desses estados os autos de resistência caíram, assim como os homicídios( ou seja, não houve relação de causa e consequência). No Piauí, mais um exemplo, só que com números de sinais

trocados. No único estado analisado em que dados de homicídios subiram (6%) em 2019, as mortes decorrentes de intervenção policial também avançaram: foram 32 entre janeiro e julho deste ano, 23% amais doque em 2018.

Em oito, por outro lado, a queda dos assassinatos foi acompanhada por um aumento da repressão policial. Num deles, São Paulo, estado que registrou a menor taxa de homicídios do país em 2018, as mortes causadas por policiais têm aumentado nos últimos quatro anos. Pesquisadores, porém, evitam supor uma relação de causa e efeito entre as duas dinâmicas.

Para Sofia Reinach, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as estatísticas da capital paulista mostram que a mancha de assassinatos se relacionam a isa aspectos socioeconômicos doqueà repressão policial. Em pesquisa desenvolvida junto ao Departamento de Estudos e Planejamento Urban odo MI T, nos EUA, Sofia cruzou dados georreferenciados de mortes violentas e autos de resistência nos bairros paulistanos. A maior incidência de letalidade policial ocorreu nas zonas leste e norte, enquanto os homicídios se concentraram na zona sul.

—O discurso oficial é de que a intervenção policial tem correlação com as mortes violentas. Elas deveriam, então, se contrapor. Mas a pesquisa indica que elas se concentram em lugares diferentes.

Stephanie Morin, do Instituto Sou da Paz, aponta que o uso de força letal por parte da polícia é mais comum para evitar crimes contra o patrimônio, como roubos de veículos, que nem sempre resultam em homicídios. Em abril, o governador João Doria (PSDB) anunciou homenagens a policiais que mataram 11 assaltantes após roubos a agências bancárias em Guararema, e parabenizou os agentes por mandarem criminosos “para o cemitério”.

— A polícia é uma instituição altamente hierarquizada. Quando existe um recado claro, seja do governador ou do comandante, de que os policiais têm que matar mais, isso abre um precedente preocupante —diz Morin.

CRESCIMENTO NO RIO

Desde 2009, as estatísticas de autos de resistência e homicídios costumam aumentar e diminuir juntas, atingindo seus pontos mais baixos entre 2013 e 2014, antes de entrarem em nova ascensão até o último ano.

No Ceará, estado que apresentou a maior redução de mortes violentas do país em 2019, os autos de resistência também estão em baixa. Os assassinatos caíram 54% no primeiro semestre, e a letalidade policial diminuiu quase 30%.

No Rio, os dados deste ano mostram queda de assassinatos, ao passo que aumentaram as mortes por intervenção policial. Na última semana, o Instituto de Segurança Pública (ISP) do governo estadual informou que, nos primeiros sete meses de 2019, houve 1.075 autos de resistência, o maior número da série histórica.

O antropólogo e ex-subcomandante do Bope Paulo Storani avalia que a ação da polícia não é a única maneira de se chegar às raízes do problema da segurança pública, mas acaba sendo necessária para impedir a expansão de facções criminosas.

— Os criminosos não depõem suas armas quando a polícia deixa de agir. Pelo contrário: eles sentem-se estimulados a se reestruturar e invadir territórios, disputando com outras facções e também com a milícia. A diferença agora é que a polícia está agindo —aponta Storani.

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Endurecimento no discurso deixou de ser apenas do baixo clero 

Marlen Couto 

26/08/2019

 

 

Antes de se tornar palavra de ordem de importantes lideranças do país, a defesa pública da ideia de que “bandido bom é bandido morto” ficava restrita a figuras do baixo clero no Congresso e das assembleias legislativas pelo país. Nos anos 1990 e início dos anos 2000, José Guilherme Godinho

Ferreira, o Sivuca, delegado e ex-deputado estadual no Rio, foi um dos seus principais porta-vozes e responsável por tornar o slogan famoso. Foi principalmente a partir das últimas eleições que a expressão voltou a virar mantra de campanha, mas dessa vez entre candidatos a cargos no Executivo competitivos e que, ao fim da disputa, acabaram eleitos.

Os agora governantes abraçaram o discurso do “bandido bom é bandido morto” e não só o trouxeram para o centro do debate político, como o transformaram em estratégia de governo para a área. Jair Bolsonaro tem defendido a aprovação no Congresso de um projeto para dar “retaguarda jurídica” para que policiais possam utilizar armas de fogo em operações sem serem processados. Ao defender a medida, foi direto ao ponto: “Os caras vão morrer na rua igual barata”.

No Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel (PSC) está alinhado com a política bolsonarista e a postura aparece refletida nas estatísticas oficias, que mostram alta dos autos de resistência. Antes mesmo de assumir o comando do Palácio Guanabara, Witzel já avisava que a polícia passaria a “mirar na cabecinha e… fogo!”. Mais recentemente, no início do mês, disse que o direito que cabe a bandidos é o “direito a velório”. Em São Paulo, embora tenha apostado na transferência de bandidos da principal facção criminosa para outros estados, o governador João Doria (PSDB) também elevou a retórica. Ao ser questionado se não temia o aumento de mortos em confrontos — após a capital paulista registrar, em maio, 12 mortes a tiros em quatro dias, Doria, respondeu: “Se forem os bandidos (que morrerem), estão indo para o lugar que merecem”. Antes disso, quando era candidato, já havia dito: “Se fizer o enfrentamento com a polícia e atirar, a polícia atira. E atira para matar”.

O discurso favorável a ações policiais mais violentas tem eco na população brasileira e, consequentemente, potencial eleitoral. Uma pesquisa do Ibope, de março do ano passado, antes de Bolsonaro, Witzel e Doria assumirem, apontou que 50% concordam com a solução “bandido bom é bandido morto”.