O globo, n.31429, 25/08/2019. País, p. 04

 

Sinal amarelo no combate a corrupção

Natália Portinari 

Naira Trindade 

25/08/2019

 

 

 Recorte capturado

 

 

Interferência em Receita, Coaf e PF gera receio de prejuízo às investigações

As ameaças de intervenção do presidente Jair Bolsonaro em órgãos de controle e investigação, como Receita Federal, Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e Polícia Federal (PF), acenderam o sinal amarelo nessas instituições.

O temor é que a interferência política prejudique o trabalho de entidades que, em atuação conjunta e com autonomia, tiveram papel central na jornada recente de combate à corrupção. Graças às três instituições foi possível desvendar, através de operações como a Lava-Jato, a Zelotes e a Greenfield, desvios nos três poderes e em inúmeros setores da economia brasileira. Nos últimos cinco anos, por exemplo, a Lava-Jato levou a mais de 240 condenações e recuperou cerca de R$ 2,5 bilhões desviados da Petrobras.

A tentativa de ingerência de Bolsonaro, eleito com um forte discurso anticorrupção, gerou malestar e desconfiança nessas categorias profissionais, que antes viam com simpatia o presidente. A reação variou nos últimos dias: houve um ensaio de renúncia coletiva das chefias da PF e da Receita, além da ameaça, de técnicos do segundo escalão do Fisco, de interromper serviços como a emissão de CPF e restituição do Imposto de Renda. Presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, Marcos

Camargo diz que a Polícia Federal é um órgão de Estado, e não de governo e, como tal, não deve sofrer ingerência política.

— Isso nos preocupa muito porque nunca existiu esse tipo de ingerência, pelo menos na história recente — diz Camargo.

—Esse tipo de troca de supetão pode levantar questões de indicações políticas, o que é muito ruim e gera uma apreensão no órgão.

Na Medida Provisória (MP) que transferiu o Coaf do Ministério da Economia para o Banco Central (BC), na última segunda-feira, Bolsonaro abriu espaço para indicações políticas. Na Receita, que acusa de fazer uma “devassa” na sua vida financeira e de sua família, foi trocado o número 2 no comando do órgão. Na PF, Bolsonaro tentou impor um nome para a superintendência no Rio e depois, contrariado com a resistência, ameaçou demitir o diretor-geral, Maurício Valeixo.

DESGASTE COM MORO

Os disparos de Bolsonaro atingiram em cheio o ministro da Justiça, Sergio Moro, a quem a PF está subordinada. O ex-juiz também havia indicado o presidente do Coaf, Roberto Leonel, que caiu coma transferência do órgão para o BC. Apesar da pressão, pessoas próximas a Moro dizem que ele não tomará a iniciativa de deixar o governo. E que, se Bolsonaro quiser, terá de assumir o desgaste de demitir seu ministro mais popular.

A PF do Rio conduziu a Operação Furna da Onça para apurar desvios na Assembleia Legislativa do estado. O antigo gabinete de Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), hoje senador, é um dos suspeitos de desviar dinheiro público por meio da prática de “rachadinha” —apropriação de parte do salário de funcionários. Além de negar qualquer irregularidade, o senador tem reclamado que o Coaf extrapolou as suas funções no repasse de dados sobre as suas movimentações financeiras. Por ora, a investigação, na qual relatórios do Coaf foram cruciais, está suspensa por decisão liminar do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli.

As atitudes recentes de Bolsonaro suscitaram críticas do coordenador da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba, procurador Deltan Dallagnol. Em entrevista divulgada pelo jornal “Gazeta do Povo” anteontem, ele disse que o presidente se apropriou da pauta anticorrupção durante a campanha, mas, agora, se distancia dela. “Ele coloca em segundo plano essa pauta quando ele faz mudanças no Coaf e desprestigia o auditor da Receita Federal Roberto Leonel, que trabalhou na Lava-Jato”, disse Dallagnol.

Líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP) fala em retrocesso democrático e defende que a MP do Coaf seja rejeitada pelo Congresso:

— Os escândalos dos últimos 30 anos só vieram à tona porque esses órgãos funcionaram. Quando é cortada a autonomia, torna-se praticamente impossível detectar os escândalos de corrupção. Para a presidente do sindicato de policiais federais em São Paulo, Tania Prado, Receita, Coaf e PF fazem parte do sistema nacional de integridade, um conjunto de instituições que atuam pela transparência e para que a administração pública não cometa desvios.

—Quando esses órgãos são mexidos pelo governo, ficam sujeitos a ingerências de todo tipo. Essa mudança no Coaf não foi por acaso. No primeiro momento, o ministro Sergio Moro queria fortalecer (o órgão) —afirmou Tania. Na semana passada, o governo ameaçou trocar o superintendente da Receita no Rio, Mário Dehon; o delegado da alfândega do porto de Itaguaí (RJ), José Alex de Oliveira; e a chefe do Centro de Atendimento ao Contribuinte da Barra da Tijuca,

Adriana Trilles. Em mensagem aos colegas, em um aplicativo de mensagens, Oliveira escreveu que “forças externas que não coadunam com os objetivos de fiscalização da Receita Federal, pautados pelo interesse público e defesa dos interesses nacionais” estariam pleiteando a troca. Após manifestações de auditores fiscais em pelo menos oito capitais e uma ameaça de demissão em massa da cúpula da Receita, essas substituições ficaram em banho-maria.