O globo, n.31429, 25/08/2019. País, p. 16

 

O que está por trás da queda nos homicídos 

Marco Grillo

Aline Ribeiro 

25/08/2019

 

 

Há dois anos, o Brasil enfrentava o ápice das taxas de violência. Uma guerra entre as duas principais facções do crime organizado do país, que começou nos presídios e se estendeu para fora deles, elevou o número de assassinatos para a faixa dos 60 mil em 2017, quase sete acada hora, evidenciando ainda mais a urgência de uma ação do poder público para conter os homicídios. Em 2018, ano seguinte ao recorde, os dados oficiais apresentaram os primeiros sinais de queda no âmbito nacional: houve 13% amenos de mortes violentas intencionais( soma de homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte) em comparação com 2017.

O movimento de redução continuou em 2019 — de janeiro a abril, a diminuição registrada foi de 20%, levando se em consideração também os quatro primeiros meses do ano passado. O número de homicídios caiu em 21 estados e no Distrito Federal. Ao longo deste mês, O GLOBO abriu dados públicos, cruzou estatísticas e entrevistou especialistas no tema com atuação em entidades da sociedade civil, o atual secretário nacional de Segurança Pública e um ex-ministro da área em busca de possíveis explicações para aqueda. O diagnóstico comum que começa a sera presentado a partir de hoje em uma série de reportagens é o de que não há um fator único capaz de justificar o fenômeno, e que tampouco houve um plano nacional que já possa justificar os resultados.

Ações específicas de governos estaduais, como os investimentos em uso de dados no Ceará (leia mais na página ao lado) e o empenho de mais efetivo policial nas ruas, casos de Rio e Pernambuco, compõem parte da explicação. Juntos, os três estados contribuíram com 45% da redução nacional no início deste ano, em relação ao período de janeiro a abril de 2018 — os 27 governos estaduais respondem por cerca de 80% dos gastos totais com segurança no país. Os dados de mortes violentas intencionais usados na reportagem foram coletados no Sistema Nacional de Informações da Segurança Pública (Sinesp), mecanismo do Ministério da Justiça e Segurança Pública que checa informações enviadas pelos estados.

—Diferentes estados implementaram políticas de segurança, com integração e reforma entre as polícias, melhorando acoleta dedados e investindo mais em inteligência. Em 2018, houve maior emprego de forças policiais. Seja coma contratação demais efetivo, co moem Pernambuco, ou pela intervenção federal, no Rio. Isso tem efeito nos indicadores — analisa a diretora de programas do Instituto Igarapé, Melina Risso.

—É preciso ver se há tendência de queda ou se é um ponto fora da curva. Há também fatores independentes das ações efetivas dos governos. Mudanças na dinâmica de atuação do crime organizado são apontadas como um deles. As duas principais facções do país romperam uma trégua em 2016, o que resultou em massacres nos presídios e aumento da violência nas ruas no ano seguinte. Depois do ápice, há um novo período de distensionamento em curso.

— Há explicações múltiplas, como ajustes do mercado da droga e da arma, acomodação das guerras que aconteceram. No panorama local, há questões que têm a ver com adinâmica do crime organizado e das políticas públicas. Mas, quando vemos a questão da violência, oque está caindo são crimes que têm a ver com a dinâmica do crime organizado. F eminicídios e mortes decorrentes de intervenção policial crescem —aponta o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima.

Ex-ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann cita a atuação dos estados como fator principal e acredita que os governadores entenderam que em 2018, ano eleitoral, a manutenção do poder político estaria diretamente ligada às ações de combate à violência. A instalação de centros integrados, com presença de representantes de diferentes forças policiais e outras instâncias de governo,é outro fator que ajuda a explicar o fenômeno—as estruturas foram criadas no escopo dos eventos esportivos que o país recebeu nos últimos anos. Além disso, no plano federal, a implementação no governo Temer do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que criou metas e obrigou estados a apresentar seus resultados na área, pode ter seu papel na redução, segundo Jungmann.

— Houve a atualização de equipamentos e a maior integração entre os órgãos. Houve melhoria em termos de inteligência, porque havia a possibilidade de convivermos com terrorismo — destaca o ex-ministro. O atual secretário nacional de Segurança Pública, Guilherme Theophilo, acrescenta que o uso da tecnologia e o levantamento das manchas criminais nos municípios têm permitido que a atuação policial se antecipe às ações criminosas. Para Theophilo, as transferências de chefes do crime organizado para penitenciárias federais, efetivadas este ano, também colaboraram para a redução. Os principais nomes da facção originada em São Paulo e com atuação em outros estados foram levados para presídios em Rondônia e no Rio Grande do Norte no início do ano. O regime prisional imposto interrompe as visitas, tornando mais difícil a chance de os chefes dos bandos transmitirem ordens.

— A rigidez dentro das penitenciárias federais e o advento da força-tarefa de intervenção prisional (em unidades de Roraima, Amazonas e Pará) dão a tranquilidade de que os presídios não serão mais os quartéis do crime —afirma.

A mudança de perfil demográfico da população brasileira, ainda que seja uma transição lenta, é mais um item citado por especialistas. Como os homicídios estão concentrados,sobretudo, na parcela que te mentre 15 e 29 anos, o envelhecimento da população, por si só, atuaria como um fator redutor. Projeções do IBGE apontam que, entre 2000 e 2030, a proporção de homens jovens cairá até 25%. De acordo coma edição mais recente do Atlas da Violência, esta condição “exercerá um papel de extrema relevância a favor da redução de homicídios”. Especialistas refutam a relação entre o aumento das mortes por intervenção policial e aqueda geral nos assassinatos. No Rio, as forças policiais foram responsáveis por 30% de todas as mortes violentas este ano.

—Existe a interpretação fácil de que os homicídios caem porque a polícia está matando mais. Mas os dados por delegacia mostram que não há essa relação —explica Joana Monteiro, professora da FGV e exdiretora do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio.

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No Ceará, foco em tecnologia 

Aline Ribeiro 

25/08/2019

 

 

Famílias expulsas de suas casas por chefes de facções criminosas. Moradores proibidos pelo tráfico de circularem em bairros dominados por organizações rivais. Assassinatos diários, com esquartejamentos e decapitações filmados e distribuídos pelo WhatsApp,a fim de espalhar o horror. Assimf oramos últimos anos em cidades cearenses, em especial para as populações periféricas. Tomado por grupos criminosos que disputam o controle da venda de drogas e armas, o Ceará registrou pico de assassinatos em 2018.

No último ano, figura como o estado que mais reduziu as mortes violentas intencionais no país, segundo dados do Sinesp. Foram 758 registros nos primeiros quatro meses deste ano, diante de 1.412 no mesmo período de 2015 — queda de 46,3%. Em comparação ao primeiro quadrimestre de 2018, a diminuição recente foi de 53,3%. Assim co mono cenário nacional, são múltiplas as explicações para aqueda. Um adelas é o aumento da repressão pela polícia, associado anovas tecnologias para sufocara expansão do crime. Além disso, contribuíram a destinação demais recursos para a pastada Segurança Pública em 2018, quando o tema estava em evidência eleitoral.

Durante a disputa pelo cargo, no ano passado, o governador reeleito Camilo Santana (PT) investiu 23,6% mais recursos na segurança do que no ano anterior. Em termos percentuais, foi o segundo maior acréscimo entre os estados brasileiros, depois de Roraima. O atual secretário de Segurança Pública, André Costa, cita três eixos de atuação: prevenção social, com foco em educação; regras mais rigorosas para os presos, como a abolição da visita íntima; e criação de um setor de big data para identificar as áreas mais críticas de cada cidade, além do investimento em tecnologia.

—Identificamos 47 micro territórios, correspondentes a 4% da área de Fortaleza, que concentraram mais de 25% de todos os homicídios nos últimos quatro anos. Para esses locais, direcionamos programas sociais e colocamos bases fixas da PM —afirma.

Entre as tentativas de combater o crime com tecnologia, Costa destaca a criação de um aplicativo para celular que reúne informações de criminosos. A intenção é que o policial, ao fazer a abordagem, consiga consultar, em tempo real e por biometria, se o suspeito tem, por exemplo, mandados de prisão em aberto. Dos cerca de 19,5 mil policiais militares do estado, 12,7 mil (65%) têm acesso ao aplicativo. Desenvolvido em parceria com a Universidade Federal do Ceará (UFC), o sistema foi apresentado ao Ministério da Justiça na última semana. Pela localização privilegiada, o Ceará é estratégico para o crime organizado.

Além de mais próximo da Europa e da África, tem dois portos (Pecém e Mucuripe), o que facilita a exportação de droga. Interessadas nessa logística, as principais facções do país — notadamente as que comandam o tráfico em São Paulo, no Rio e no Amazonas, —fincaram raízes ali. Em 2016, o Ceará viu nascer uma organização criminosa própria, cujo mote era resistir à expansão dos bandos forasteiros. O grupo rapidamente se espalhou nas periferias. Chamava a atenção pela juventude de seus integrantes e pelos métodos violentos. Até 2016, as facções conviviam numa espécie de armistício não declarado.

Em outubro daquele ano, num reflexo do racha nacional entre a facção paulista e a fluminense, os grupos deram início a uma guerra armada, com aumento de assassinatos e chacinas. Aliado à organização local, o grupo de São Paulo chegou a 2,5 mil filiados no estado. Para isso, aboliu amensalidade que cobrados integrantes, a chamada “cebola”, algo em torno de R$ 700. Em janeiro de 2017, uma onda de ataques a ônibus, bancos, prefeituras, comércios e prédios públicos se estendeu por mais de uma semana nas cidades cearenses.

Os atentados, segundo investigadores ouvidos pelo GLOBO, foram resultado de uma reconciliação temporária entre as facções de São Paulo e do Rio para lutar contra o Estado. A trégua pontual foi motivada pela nova política penitenciária do governo estadual. A secretaria que cuida dos presídios decidiu abolira separação de presos por facções nas cadeias. Nesse contexto, os grupos se uniram para atacar o Estado.

RISCOS AINDA REAIS

O cientista social Luiz Fábio Paiva, professor da UFC e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), prefere chamar a pactuação de “reacomodação das forças” do crime. Segundo ele, as facções continuam presentes e atuantes, com força dentro e fora das prisões. A diferença agora é que, depois de dois anos de intenso enfrentamento e diante das medidas adotadas pelo governo estadual, os grupos criaram estratégias menos bélicas.

—Não vejo como um acordo. Ou, se ele efetivamente aconteceu, é preciso considerar as condições precárias em que esse tipo de ação se sustenta. A qualquer momento, é possível encontrar um motivo para se colocar fim à “trégua” e, consequentemente, aumentar as disputas por territórios e poder — diz Paiva. Embora o governo afirme que o Ceará não tem mais territórios dominados, moradores da periferia relatam que as facções continuam controlando seus bairros. Maria (nome fictício), líder de um grupo de mães de jovens encarcerados, diz que a população ainda não recuperou o direito de ir e vir nas comunidades.

—O Estado não nos assegura isso. Por causa dos meus trajes e da minha idade, ainda consigo circular. Mas, para a juventude, é muito difícil. Eles são barrados, tiram fotos deles, perguntam para onde vão —afirma ela. A chegada do policiamento ostensivo na periferia para conter o crime trouxe, como efeito colateral,o aumento de casos de abuso das forças de segurança. Maria conta que, apesar de trazer certa segurança aos moradores, as abordagens policiais não raro são feitas com violência e exposição dos jovens. Ela diz conhecer ao menos 30 páginas no Facebook, alimentadas por policiais, em que os rostos e endereços de suspeitos são divulgados na abordagem:

— Eles colocam a imagem, divulgam o endereço, o bairro. É perigoso. Temos muitos jovens perseguidos, que apanham da polícia sempre que são abordados, ficam marcados.