O Estado de São Paulo, n. 46066, 02/12/2019. Espaço aberto, p. A2

 

A saúde de nossas universidades

Charles Mady

02/12/2019

 

 

Tenho escrito neste espaço opiniões sobre nossos sistemas de saúde e educação, sempre dando abertura a concordâncias e discordâncias, com a intenção de produzir diálogos construtivos. Tento assim ajudar na elaboração de ideias em temas espinhosos, raramente abordados por diversas razões, entre elas interesses corporativos poderosos, além da falta de conhecimento adequado sobre os assuntos. Nessas discussões, pontos mais sensíveis são evitados quando se trata de temas universitários, como os relacionados à formação dos corpos docentes e à forma como as atividades didáticas, científicas, assistenciais e administrativas são desenvolvidas. Minha visão pode ter vieses, pois minha atuação é predominantemente num hospital-escola, o Incor, e num centro acadêmico, que é a Faculdade de Medicina da USP, pontuais, dentro de um amplo universo. A discussão passa obrigatoriamente pela forma como esses centros de ensino são geridos e como são formados os grupos de liderança. São nossas gestões saudáveis para os alunos e a sociedade?

Como em todas corporações, há sistemas de gestão estabelecidos no comando dessas entidades, com seus lados positivos e negativos. Esses sistemas, se tiverem o perfil construtivo institucional, com base em regras bem definidas, levariam a uma boa governança, dificultando muito o aparecimento de vícios. Estes criam núcleos de poder para poucos, em geral fisiológicos, com altas doses de nepotismo e conflitos de interesses incompatíveis com a boa saúde acadêmica. O lado político do sistema passa a pesar muito mais que o mérito, necessário para manter a qualidade das universidades. Abrem-se assim portas e portões para a instalação de enormes conflitos de interesse, com projetos pessoais, ou de pequenos grupos, instalados no poder, com sucessões previamente garantidas por caminhos tortuosos, que terminam em decadência, em destruição a serviço de corporativismos. E tudo conduzido “dentro da lei”.

Esses sistemas têm uma “ética” própria, de silêncio e conivência, e apontar erros dolorosos condena pessoas à escuridão eterna, destruindo personalidades e reputações com relativa facilidade. Hoje as versões são mais fortes que a realidade. Boas gestões são transparentes.

Quantos profissionais de alto nível foram perdidos por esses motivos? Quanto de qualidade se perdeu? As consequências são conhecidas por todos, pois uma vez ou outra vazam, para a imprensa leiga, poucos de muitos escândalos consequentes a esses sistemas. Como a reforma política no País, nunca foi tão necessária uma reforma universitária, tentando diminuir a incidência de más gestões. Como ideia, um fórum comandado por reitores, com comissões democraticamente eleitas, heterogêneas, para levar adiante um trabalho árduo e de longa duração, poderia ser instituído.

Nossos atuais reitores das três universidades públicas estaduais têm alta competência e credibilidade para iniciar e comandar um processo dessa envergadura. O constante declínio de qualidade deve ser interrompido e a mudança de mentalidade dentro dos corpos docentes talvez seja item tão ou mais importante que a falência financeira que vivemos. Insisto em dizer que hoje a qualidade dos recursos humanos é muito mais importante que tecnologia de última geração, ao menos no meio onde trabalho. As gerações futuras seriam muito beneficiadas, pois a contaminação pelos maus exemplos já é sentida atualmente. Os maus exemplos dão aulas de desserviço à formação ética de nossos alunos, com consequências funestas para o futuro da prática médica.

Perguntas e ideias se impõem. E devem partir de amplo debate nessas comissões e na sociedade. Como exemplo de temas amplos, quanto nossas gestões são democráticas, representativas dos corpos docentes e discentes? Nossas regras, nossas “constituições”, são adequadas para os tempos atuais ou são mantidas desde a fundação de cada universidade? São efetivas hoje como eram antigamente? Nossas lideranças são escolhidas de forma adequada, ou persistiremos em sistemas feudais, em que poucos podem muito, com as consequências aqui expostas, conhecidas de todos, mas pouco discutidas pelo temor de consequências? Existem critérios de julgamento com autoridade suficiente para apontar erros e acertos, diminuindo a possibilidade de poluir gestões? Tal e qual os ministros do Supremo Tribunal, quem tem o poder de aplicar sanções a um professor titular? Qual é a autoridade dos órgãos responsáveis sobre eles? A propósito, eles são vitalícios e absolutos. Não seria adequado julgar periodicamente, sem corporativismos, todos os professores, analisando produção, dedicação, enfim, resultados? Quanto as universidades evoluiriam com reformas direcionadas a essas finalidades?

O sucesso na carreira não deve ser material ou social, e sim acadêmico. Como já inúmeras vezes aqui disse, a finalidade primeira de um professor é a academia, que já está cansada de professores que são mais empresários e turistas que professores.

Em minha vida universitária, que, repito, é pontual, assisti a inúmeras mudanças de currículos, a grande maioria com efeitos cosméticos. Essas mudanças não atingem ou não atingiram resultados, pois os recursos humanos permanecem e permaneceram com os mesmos vícios. Numa reforma, deve-se dedicar grandes esforços a mudar mentalidades e nossa cultura.

Temos em nosso meio grupos profissionais altamente qualificados, que deveriam servir de exemplo para nós e para o mundo. Temos recursos humanos de elevado nível ético e profissional. Angustia observar a dificuldade encontrada por alguns desses grupos de profissionais para atingir postos universitários de liderança. Cito, com alguma frequência, um pensamento de Paulo Freire: “Educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas transformam o mundo”. Devemos aprender com os fatos desabonadores em nosso meio, tirar boas lições e daí ensinar os alunos a trilharem caminhos mais saudáveis.