O globo, n.31428, 24/08/2019. Mundo, p. 32

 

Cúpula da divisão

Fernando Eichenberg

24/08/2019

 

 

No status de anfitrião, o presidente francês, Emmanuel Macron, recebe de hoje a segunda-feira, em Biarritz, seus colegas do grupo de países ricos do G7 (Estados Unidos, França, Reino Unido, Alemanha, Japão, Itália e Canadá) em um turbulento contexto mundial. Embora o tema central do encontro seja “a luta contra as desigualdades”, as expectativas giram em torno de conversas paralelas sobre dossiês polêmicos como a guerra comercial entre os EUA e a China, o acordo nuclear iraniano, o conflito na região síria de Idlib, a situação na Ucrânia, as negociações do Brexit e a urgência climática — reforçada pela indignação internacional causada pelas queimadas na Amazônia.

Na avaliação de analistas, a cúpula presidida pela França, que não terá o tradicional comunicado final, é marcada de forma inédita por fortes dissensões entre seus participantes, envolvidos com problemas domésticos importantes.

Para Bertrand Badie, especialista em relações internacionais do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences-Po), jamais, desde sua criação em 1975 para enfrentar o choque do petróleo e a crise do dólar, o G7 se reuniu “em uma conjuntura tão desfavorável”:

—Primeiro, porque o G 7 nunca esteve tão dividido e a vontade de concertação nunca foi tão fraca. Dividido porque o campo dos soberanistas, principalmente os EUA de Donald Trump, procura se distanciar de acordos mundiais. Mas também porque cada um dos membros tem seus problemas internos. Não há em relação aos grandes temas algum acordo potencial. E pior: o jogo da maioria dos participantes é mais demostrar diferenças e divergências do que buscar um compromisso.

ÚLTIMO INTERNACIONALISTA

O analista ressalta que o G7 não é um grupo formado para tomada de decisões, mas para “explorar possibilidades de convergências”. E lembra que, mesmo em períodos de grandes divergências, como no início dos anos 1980, quando o então presidente francês, François Mitterrand, pregava a regulação econômica mundial em franca oposição ao americano Ronald Reagan e à britânica Margaret Thatcher, havia uma disposição de não evidenciar as discordâncias.

— O novo é que, pela primeira vez desde 1975, há uma vontade de afirmação das divergências. É um elemento chave da política externa populista e da chamada diplomacia eleitoral. Isso remete tanto ao presidente Jair Bolsonaro como ao líder italiano Matteo Salvini, ao húngaro Viktor Orbán ou a Trump. É um pouco a expressão do bloqueio atual do sistema internacional: a ideia não é mais convergir, mas se afirmar.

Trump, em campanha para a reeleição em 2020, mantém sua trajetória solo, já evidenciada por atitudes como a retira dado Acordo de Paris sobre o Clima e do pacto nuclear com o Irã. A chanceler Angela Merkel governa em ritmo de fim de mandato em uma Alemanha ameaçada pela recessão. A Itália se encontra em um impasse político após o ultranacionalista Matteo Salvini provocar o fim da coalizão de governo. O novo premier britânico, Boris Johnson, ainda busca uma porta de saída para o Brexit. Já Macron, que mesmo com desgastes sobreviveu à crise dos coletes amarelos, procura se afirmar no cenário mundial como o último líder internacionalista.

—Pode-se dizer que a diplomacia francesa está em uma situação mais favorável — avalia Badie. —Primeiro, porque é praticamente a única a defender com força o multilateralismo. Segundo, porque ocupando a presidência da cúpula, a França se coloca em condições de se apresentar como intermediária: entre o G7 e o presidente russo, Vladimir Putin; entre o G7 e o Irã, ou entre o Sul e o Norte, ao lançara questão das desigualdades no debate. Macron atuou habilmente em um quadro negativo, e poderá tirar algumas vantagens para sua própria diplomacia.

Raros são os que esperam, no entanto, anúncios concretos. Nem o comunicado oficial, frequentemente criticado por ilustrar “palavras ocas e vazias”, terá vez ao final do encontro, para não correr o risco de repetir o fiasco da cúpula do Canadá, no ano passado, quando Trump retirou, via Twitter, sua assinatura do documento, sem deixar de insultar o premier Justin Trudeau. Para Christian Lequesne, do Centro de Pesquisas Internacionais (CERI, na sigla em francês), a ausência de um texto de conclusão é repleta de simbologia:

— O mundo ocidental não apresenta, hoje, uma bela unidade, revelando vários tipos de tensões. A primeira é o fator Trump, um líder que não perde uma ocasião para criticar e enfraquecera Europa politicamente. O fato de que os sete países não sejam mais capazes de redigir um comunicado final é mais um sinal de desunião e de fraqueza.

VOLTA DA RÚSSIA

Expulsa do então G8 em 2014, após anexara Crimeia e provocara desestabilização da Ucrânia, a Rússia, na opinião de analistas, não deverá ser reintegrada tão cedo, mesmo com o lobby de Trump. Macron quer impor condições ao retorno de Moscou. Embora concorde co matese de que, hoje, o G 7 serve sobretudo par amostrara incapacidade dos países ocidentais em alcançarem consensos, o historiador de relações internacionais Maurice Vaïsse ainda acredita no poder da diplomacia. Segundo ele, os integrantes do G7 não se encontram em boa forma, e aquele que, hoje, aparece como o “menos fraco” é a França. Nessa lógica, Macron poderia insistir no retorno das negociações e na reconsideração do multilateralismo, diz:

— A punição à Rússia pelo golpe de força na Crimeia foi natural e salutar, mas é inevitável que o país volte a este grupo de potências, sobretudo após seu papel no conflito na Síria. Mas o mundo mudou, e nos damos conta, hoje, de que o G7 é um formato restrito e centrado no Ocidente.

Badie define o G7 como um “clube da nostalgia”, que não corresponde a nenhuma realidade internacional concreta, e que, por isso, tem uma utilidade limitada. Na mesma linha, Lequesne questiona a pertinência em sua atual configuração:

— Quando foi criado em 1975, o então G6 representava em seu poder econômico dois terços da riqueza mundial, e hoje essa relação caiu a menos de um terço. Sua população corresponde a 10% da população do planeta. É incontestável que o sistema internacional mudou, e uma instância que não inclua China, Índia ou Brasil não representa a realidade de poder no mundo.

Para arejar o encontro deste fim de semana, Macron anunciou uma cúpula renovada com a presença de países convidados: África do Sul, Austrália, Chile, Índia, Ruanda, Senegal, Burkina Faso e Egito.