O globo, n.31427, 23/08/2019. País, p. 04

 

'Eu indico, não o Moro'

Daniel Gullino

Aguirre Talento

23/08/2019

 

 

Em mais um gesto de afastamento em relação ao ministro da Justiça, Sergio Moro, o presidente Jair Bolsonaro deu nova sinalização de interferência em órgãos de investigação ao dizer ontem que poderia trocar até o diretor-geral da Polícia Federal (PF), Maurício Valeixo. Bolsonaro fez a afirmação em entrevista, pela manhã, ao reclamar da repercussão de um pedido seu para mudar a superintendência no Rio e repetiu o argumento, à noite, durante transmissão ao vivo pelas redes sociais.

A declaração provocou mal-estar na PF. Delegados, que estão reunidos em um evento em Salvador, reagiram defendendo a autonomia formal do órgão e mandato fixo para seu diretor geral, o que blindaria o comando de interferências políticas.

Moro, por sua vez, não pretende pedir demissão. Pessoas próximas afirmam que Bolsonaro terá que assumir o desgaste de demiti-lo (detalhes na reportagem abaixo).

A disputa na PF começou como pedido de Bolsonaro para que Ricardo Saadi fosse substituído na superintendência do Rio por Alexandre Saraiva, superintendente do Amazonas. O motivo seria“gestão e

produtividade”, desmentido por nota da PF. A corporação decidiu antecipar a saída de Saadi, prevista para o fim do ano, mas anunciou como substituto Carlos Henrique Oliveira Sousa, que atuava em Pernambuco. Bolsonaro ensaiou baixar o tom na semana passada, dizendo que “tanto faz” quem assumir o posto, mas voltou à carga ontem.

—Agora há uma onda terrível sobre superintendência. Onze foram trocados e ninguém falou nada. Sugiro o cara de um estado para ir para lá, “está interferindo”. Espera aí. Se eu não posso trocar o superintendente, eu vou trocar o diretor-geral. Não se discute isso aí — disse Bolsonaro, pela manhã.

Ele questionou várias vezes qual seria o problema se substituísse Valeixo:

—Se eu trocar hoje, qual o problema? Está na lei. Eu que indico, e não o Sergio Moro. E ponto final. Qual o problema se eu trocar hoje ele? Me responda.

Pela legislação, Bolsonaro tem a prerrogativa de nomear o diretor-geral da PF, ainda que a instituição esteja subordinada à Justiça.

Reservadamente, delegados têm classificado Bolsonaro como “traidor”, primeiro por causa da reforma da Previdência, que não atendeu a pleitos da categoria, e agora em função da tentativa de interferência. A insatisfação foi verbalizada ontem, no evento corporativo de policiais em Salvador, pelo presidente da Associação dos Delegados da Polícia Federal, Edvandir Paiva.

— É fundamental que o nosso diretor-geral tenha mandato, seja escolhido por critérios técnicos e republicanos, que tenha a capacidade de formar a sua equipe sem interferência de nenhum posto político do governo. Porque a Polícia Federal é uma polícia de Estado — afirmou o delegado na abertura do evento, cujo tema é o combate à corrupção. Presente no evento, o diretor-geral da PF discursou sobre o tema da corrupção, mas não comentou possíveis tentativas de interferência.

PEDRAS NO CAMINHO

A PF está à frente de uma investigação contra o ministro Marcelo Álvaro Antônio (Turismo), acusado de ter patrocinado um esquema de candidaturas laranjas do PSL, partido de Bolsonaro, em Minas.O órgão também deve marcar em breve um depoimento do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) em uma ação da Justiça Eleitoral do Rio, que apura possível falsidade na declaração de bens do parlamentar nas eleições de 2014.

O governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), discordou ontem de Bolsonaro e disse ser defensor da independência da PF. Para Witzel, a tentativa de nomear diretamente um delegado significa “ferir a cadeia de comando” da polícia. O governador fez as declarações após participar do evento da PF em Salvador.

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Pressionado, ex-juiz não tomará iniciativa de sair 

Jailton de Carvalho

23/08/2019

 

 

O ministro da Justiça, Sergio Moro, deve aguentar calado derrotas e desautorizações públicas a que vem sendo submetido pelo presidente Jair Bolsonaro. O chefe do Executivo terá que assumir o desgaste de demitir o ministro mais popular da Esplanada se quiser ver Moro fora do governo e, claro, explicar os motivos da demissão. Quem diz isso são pessoas que convivem com o ministro.

Ontem, mesmo depois das declarações de Bolsonaro sobre a possibilidade de trocar o diretor-geral da Polícia Federal (PF), Maurício Valeixo, Moro manteve a agenda sem qualquer alteração. Participou de duas solenidades e várias reuniões com auxiliares e com parlamentares. Reservado, o ministro não explicitou críticas ou queixas.

Interlocutores de Moro consideram que as declarações de Bolsonaro têm sido excessivas, sobretudo sobre mudanças na PF. Para eles, o presidente estaria interessado em “desidratar” o ministro para que não faça sombra sobre ele. Bolsonaro estaria de olho em 2022 e não quer, segundo esses interlocutores, nenhum concorrente forte por perto.

Tão reservado quanto Moro, o diretor da PF também decidiu se manter em silêncio. Depois da nota da semana passada na qual desmente Bolsonaro sobre as razões da troca do superintendentes no Rio, Ricardo Saadi, Valeixo e os demais diretores resolveram aguardar os movimentos do presidente sem fazer novas manifestações públicas. Na nota, Valeixo disse que Saadi deixaria o cargo por vontade própria. Na quinta-feira passada, Bolsonaro afirmou que o delegado sairia por problemas de “gestão” e “produtividade”.

As declarações de Bolsonaro sobre Saadi foram as primeiras manifestações públicas de um presidente da República sobre um cargo de segundo escalão da Polícia Federal.

A PRAXE

Em geral, políticos, sobretudo governadores, tentam influenciar na indicação de superintendentes. Mas isso é feito, em geral, de forma indireta. E a cúpula da polícia evita indicar para as superintendências delegados sem bom trânsito com administradores locais, especialmente governadores.

Ao anunciar a saída de Saadi e mencionar um outro nome para o cargo, diferente do escolhido pelo diretor-geral, Bolsonaro interferiu na administração interna da polícia. Valeixo e os demais diretores teriam se sentido atropelados pela imposição do presidente. Da mesma forma, Bolsonaro teria se sentido afrontado pela nota em que a PF informa sobre os motivos da troca de comando no Rio e indica o nome do sucessor de Saadi, diferente do que o presidente anunciara.

OS ATRITOS ENTRE O PRESIDENTE E O MINISTRO

1 Decreto de armas

No primeiro mês de gestão, o presidente Jair Bolsonaro editou decreto para flexibilizar o porte e a posse de armas sem pareceres técnicos do Ministério da Justiça. Moro mostrou desconforto com o projeto e disse que a medida não era política de segurança pública.

2 Indicação de Ilona Szabó

Moro indicou a cientista política Ilona Szabó como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. A militância bolsonarista nas redes sociais reagiu, e o ministro foi obrigado a recuar e desfazer o convite após telefonema de Bolsonaro.

3 O pacote anticrime

Principal projeto de Moro, o pacote anticrime sofreu desidratações na Câmara e não recebeu o apoio esperado de Bolsonaro. O presidente chegou a defender que Moro desse uma “segurada” no projeto para não causar “turbulência” para as reformas.

4 Mudanças no Coaf

Moro queria o Coaf na Justiça, mas foi derrotado na Câmara com o aval de Bolsonaro para que o órgão voltasse para a Economia. Em um novo revés do ministro, o chefe do Coaf, Roberto Leonel, indicado pelo ex-juiz, perdeu o cargo após pressões do presidente.

5 Interferências na Polícia Federal

Após a troca do chefe da Polícia Federal no Rio e a tentativa de nomear outro superintendente, Bolsonaro disse que pode mudar o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, escolhido pelo ministro. O presidente fez questão de afirmar que ele é o responsável pela indicação, não Moro.