O Estado de São Paulo, n. 46082, 18/12/2019. Espaço aberto, p. A2

 

A trégua comercial EUA-China

Sergio Amaral

18/12/2019

 

 

O acordo comercial entre os Estados Unidos e a China é importante, ainda que limitado. Distensiona uma relação marcada por sanções e represálias, assim como reduz as incertezas nos mercados.

Para Donald Trump representa um ganho político expressivo. Como explicar aos eleitores que o autor de A Arte da Negociação ainda não tivesse concluído um único acordo político ou comercial relevante em seus três anos de mandato? Com a trégua comercial, Trump também atenua seu crescente desgaste entre os produtores de grãos do Meio-Oeste, um dos seus fiéis redutos eleitorais.

O acordo deverá interromper a escalada tarifária em alguns setores e promover uma desescalada em outros. Alguns capítulos do acordo, tais como propriedade intelectual, serviços financeiros e transferência de tecnologia, ainda estão em fase de negociação.

Para avaliar a extensão desta trégua é preciso ter presente que a chamada guerra comercial é mais do que comércio e se desdobra em vários patamares.

1) O primeiro é do comércio propriamente dito. O objetivo de Trump é reduzir significativamente o déficit comercial com a China, da ordem de US$ 350 bilhões por ano. Se a demanda americana fosse só essa, seria fácil de ser atendida pela China, pois bastaria comprar mais dos Estados Unidos, em detrimento das exportações de outros países, como o Brasil.

2) O segundo é o da tecnologia. O que está em jogo é o acesso da China aos segmentos que ainda não domina inteiramente em algumas tecnologias de ponta, como a inteligência artificial e as telecomunicações. Essa é a meta do programa China 2025, que se propõe a assegurar a autonomia tecnológica da indústria e, por conseguinte, do programa militar chinês. Diante desse cenário, que só se tornou mais claro ao início do governo Trump, Washington adotou uma estratégia abrangente para conter a emergência da China, mediante o reforço dos controles de exportação, uma filtragem mais rigorosa dos investimentos chineses (CFIUS) e restrições à cooperação acadêmica e até mesmo estudantil.

3) Mais recentemente Trump convocou as empresas americanos, como a Apple, para promover um decoupling, ou seja, o desentranhamento de componentes tecnológicos chineses (da Huawei, por exemplo) nas cadeias globais de valor. Ao mesmo tempo, os EUA se empenharam na batalha para dissuadir parceiros e aliados, como europeus e latino-americanos, de adotarem a tecnologia 5G da Huawei. Nesse contexto, a sobretaxa ao aço brasileiro e a decisão do governo de adiar a licitação do sistema 5 G, para novos estudos, podem não ser mera coincidência.

4) Por fim, Robert Lighthizer, o Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR), passou a contestar abertamente o modelo de desenvolvimento chinês, sob o argumento de que contém um subsídio implícito, em decorrência da presença dominante das empresas estatais nas exportações chinesas, o que levou o negociador chinês Liu He a traçar uma linha vermelha nas negociações ao dizer que sua delegação estava disposta a negociar comércio, mas não princípios.

Tendo em vista a complexidade e a sensibilidade de alguns dos temas da agenda sino-americana, é provável que as negociações no próximo ano se limitem aos contornos traçados pela trégua comercial. Os temas mais controversos serão monitorados por Trump de olho nas pesquisas de opinião.

A trégua comercial é certamente positiva por trazer, ao menos durante o período da campanha presidencial, um alívio nas tensões que contribuíram para retrair investidores ou reduzir o crescimento. Mas ainda é difícil medir seu impacto em setores específicos, pois não conhecemos os detalhes. Pode-se supor que os setores que mais se beneficiaram com as sanções, como o da soja, tenham mais dificuldade de manter os patamares de exportação que atingiram.

A carne foi beneficiada por expressivo aumento do número de frigoríficos habilitados, que passou de 17 em setembro, para 38 em novembro. Será também afetada pelo retomada das exportações norte-americanas para a China.

O etanol também merece atenção e, mais do que isso, um esforço negociador para preservar os interesses brasileiros. A decisão do governo chinês de autorizar a mistura de etanol à gasolina até 10% e, mais recentemente, de atingir essa meta até o fim de 2020 criou uma grande oportunidade, provavelmente a última, para desenvolver um mercado global para o etanol. O aumento da tarifa de importação na China para o etanol americano, que era de 30% e com a guerra comercial pulou para mais de 40%, criou um incentivo adicional às exportações brasileiras. Agora o lobby do etanol americano pleiteia uma tarifa de 15%. Se assim for e a tarifa para o Brasil permanecer em 30%, o etanol brasileiro perderá acesso ao mercado chinês.

O comércio é apenas a ponta do iceberg. Por trás das tarifas está a tecnologia. Por trás da tecnologia estão a supremacia industrial e militar e a expansão do programa One Belt One Road. Tomados em conjunto, os avanços nessas áreas levaram a Estratégia de Defesa norte americana a qualificar a China como competidor estratégico dos EUA. Em visita a Barack Obama, em 2015, Xi Jinping sugeriu que os dois países instaurassem um diálogo de grandes potências, uma fórmula sutil de acenar para um duopólio na nova ordem mundial em gestação. Obama não respondeu.

Em maio de 2018 fui convidado a fazer uma apresentação no Aspen Defense Summit e na ocasião participei também do painel presidido por Daniel Coats, diretor da Inteligência Nacional, órgão que coordena as demais agências de inteligência do governo. Perguntei-lhe se os EUA estavam dispostos a aceitar a China como um par, num novo condomínio mundial. Respondeu que a sociedade norte-americana ainda não estava preparada para responder a essa pergunta.