Correio braziliense, n. 20520, 27/07/2019. Opinião, p. 11

 

Invasão à privacidade de agentes públicos

William Douglas

Rogério Greco

27/07/2019

 

 

Cada cidadão pode gostar ou não da Lava-Jato e da figura de Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa do MPF para a operação em Curitiba. Mas aceitar a invasão de privacidade contra um agente público que atua no combate ao crime organizado é incompatível com a Constituição e os valores morais que deveriam orientar nossa sociedade. Um procurador da República, um juiz ou um policial não pode sofrer represálias nem ser atacado em sua privacidade por desempenhar suas funções públicas. Se isso acontece, o Estado se enfraquece, e a criminalidade sai ganhando. Quem vai querer trabalhar duro nessa sensível missão para ser exposto e atacado?

Suspeitos de cometer crimes estão sujeitos a interceptações estatais. Decidir pela vida criminosa é assumir o risco de ser investigado e até preso. É normal que suspeitos de crimes sejam alvo de escuta telefônica e, mesmo assim, só com prévia autorização judicial. Quem decide trabalhar no combate à corrupção, no entanto, não deveria estar sujeito a interceptações privadas feitas à revelia do Judiciário e usadas como verdadeiras sem serem submetidas ao exame pericial oficial.

Quem se diverte e faz sensacionalismo com a privacidade alheia hoje pode ser a vítima de amanhã. Esse ambiente atrapalha a busca pela construção de uma sociedade melhor e mais justa, em que os cidadãos possam viver com decência, com sua segurança e direitos fundamentais assegurados, inclusive, a privacidade.

O que vemos agora vai, justamente, contra esse ideal. Supostas conversas privadas sobre palestras lícitas foram expostas publicamente. Qual crime Deltan Dallagnol cometeu? Não é crime nem sequer errado um servidor público ministrar cursos e palestras ou receber pelos livros que escreve.

A atividade de palestrante é uma opção para ministros de tribunais superiores, juízes, parlamentares, jornalistas, professores e outros profissionais. Ter eventual ganho ou lucro com palestras é lícito. O que está sendo vendido como errado ou antiético são condutas normais. O único aspecto que diferencia o caso do procurador Deltan Dallagnol das demais autoridades públicas que dão palestras é que ele direciona valores expressivos ganhos com suas apresentações para instituições filantrópicas e projetos sociais.

Cabe ainda refletir sobre a origem ilegal das supostas mensagens atribuídas ao procurador da Lava-Jato. A Constituição, em seu artigo 5º, diz que provas ilícitas não são admitidas no processo judicial. Qual é o limite legal e ético para o uso de materiais ilícitos no jornalismo? Qual é o tipo de análise técnica isenta que pode assegurar ao público a consistência e a veracidade das informações? Como a sociedade e os próprios jornalistas podem se proteger de criminosos que queiram usar a imprensa para jogar provas ilícitas no debate público ou até mesmo comercializar informações íntimas de adversários?

Não está agasalhado pela Constituição o direito de expor a vida privada de qualquer cidadão. Mas existe a proteção legal à exposição da intimidade de todos, o que alcança um procurador que atua contra o crime.

Infelizmente, parece que uma parte razoável da sociedade, cada vez mais polarizada, deixou de compreender que “pau que dá em Chico dá em Francisco”. Seria um avanço para o Brasil abolir os “dois pesos e duas medidas”. Se o leitor admitir que materiais obtidos de forma criminosa sejam usados para atacar um desafeto, amanhã terá que aceitar ser atingido pela mesma atitude.

O bom senso também requer não igualar situações distintas. Qualquer interceptação de dados deve ser precedida de ordem judicial. Sem isso, estamos diante de um crime. É preciso, ainda, não confundir os suspeitos de cometer crimes com os agentes públicos responsáveis por apurar e denunciar as ilegalidades. O servidor público é obrigado a dar satisfações à sociedade, mas isso jamais significa que ele não tem direito à privacidade assegurada a todos. (...)

William Douglas

Juiz federal no Rio de Janeiro

Rogério Greco

Pós-doutor em direito penal