Correio braziliense, n. 20521, 28/07/2019. Mundo, p. 12

 

Navegar é preciso

Rodrigo Craveiro

28/07/2019

 

 

Cuba » Regime do presidente Miguel Díaz-Canel legaliza acesso à internet sem fio em residências a partir de amanhã. Moradores da ilha lamentam preços proibitivos de equipamentos e do serviço wi-fi, e acreditam que o único provedor estatal manterá bloqueio a sites

Até pouco tempo atrás, Cuba era uma ilha não apenas na concepção geográfica. Os 11 milhões de habitantes da nação caribenha estavam praticamente isolados do mundo em relação ao acesso à internet. No entanto, o regime socialista constatou que navegar é preciso e que permanecer à margem da rede mundial de computadores traria mais danos do que benefícios. Somente em dezembro passado os cubanos começaram a surfar pelas ondas do mundo virtual por meio de celulares. A partir de amanhã, Cuba tornará legais as redes de wi-fi instaladas nas residências. No entanto, além dos preços proibitivos da própria navegação, os cidadãos precisarão arcar com a importação dos roteadores, equipamentos que encaminham informações por meio de pacotes de dados. O fornecimento dos serviços de conexão ficará sob monopólio da estatal Empresa de Telecomunicaciones de Cuba (Etecsa).

O jornalista cubano Abraham Jiménez Enoa, diretor da revista independente El Estornudo, afirmou ao Correio que a decisão do governo do presidente Miguel Díaz-Canel — no poder há 465 dias — fará com que mais cubanos se conectem à internet. “Isso será apenas uma questão de possibilidade. O caminho estará criado, mas o acesso ainda contemplará pouco”, lamenta. Segundo ele, os preços seguem “altíssimos”, em comparação ao ganho mensal médio dos moradores da ilha. “Uma hora de internet em Cuba custa US$ 1, enquanto os salários, que acabaram de aumentar, rondam os US$ 50”, observa.

Simbolismo

Abraham considera que a medida representa uma abertura apenas simbólica. “O governo continuará impondo a censura contra os meios de comunicação considerados desafetos da Revolução Cubana. Isso vale para a minha revista”, lamenta. Desde 2018, as autoridades bloqueiam o acesso à El Estornudo em território nacional. Para terem a chance de ler a publicação, só resta aos cubanos a opção de recorrer a um proxy (servidor que recebe e distribui as requisições de um usuário) ou a uma VPN (uma rede privada virtual que funciona como túnel seguro entre dois ou mais dispositivos).

Segundo Abraham, não restava outra escolha ao regime cubano senão legalizar as redes domésticas wi-fi. “Poucos são os países que não oferecem acesso à internet. Com essa decisão, nos parecemos um pouquinho menos com a Coreia do Norte, mas só um pouquinho menos”, compara. Ele aposta que a censura à imprensa seguirá existindo. “O governo teme que os meios de comunicação contem a realidade  de Cuba, a tornem pública. Como em todas as ditaduras, a maneira de combater essa situação passa por sequestrar a verdade, escondê-la e deixá-la trancada.” No início do mês, novas regulamentações para as telecomunicações e a internet preveem multa de US$ 120 a quem publicar, nas redes sociais, conteúdo que desagrade as autoridades.

Libert Puente Baró, engenheiro de Havana e diretor da empresa privada TostoneT, especializada em serviços de informática e telecomunicações, admitiu à reportagem que aprecia as medidas como demonstração de ampliar a participação e o acesso popular à internet. “Isso pode ser avaliado como uma maior abertura da gestão governamental. Há muitos desafios, pois não basta o acesso; exige-se o domínio da tecnologia e a capacidade de usá-la de modo favorável. O governo assumiu o desafio de ampliar a infraestrutura, com a responsabilidade e os custos compartilhados com a sociedade civil, ao mesmo tempo em que promove os principais líderes do governo, a fim de que estejam visíveis e acessíveis através da internet, para serem avaliados pelo que fazem, consultados e questionados”, disse.

Baró espera que, ante os altos custos de conexão e a necessidade de infraestrutura domiciliar, o governo faça investimentos para reduzir gradualmente os preços de navegação e melhorar a qualidade do serviço.  “Eles parecem ter compreendido que melhor do que restringir é educar, melhor do que proibir é avaliar, e melhor do que limitar é ampliar possibilidades com responsabilidade compartilhada.”

Por sua vez, Eric Caraballoso Díaz, correspondente da revista OnCuba (cuja filosofia é ser uma ponte de comunicação entre a ilha e os Estados Unidos), vê uma decisão coerente com a política do governo de Díaz-Canel, focada na informatização. Ele lembra que o regime criou redes de wi-fi públicas; depois, a conexão por fio nas residências (serviço chamado de “nauta hogar”). “Em dezembro, implantou a conexão em celulares por dados móveis. O caminho tem sido lento, mas não se deteve. A medida que entrará em vigor amanhã tem a ver com redes não apenas domiciliares, mas acessadas também fora das casas, por cobrirem uma área maior a partir de uma matriz privada”, comentou o jornalista.

Pontos de vista

Por Eric Caraballoso Díaz

Combate à marginalização

“Essa decisão é parte de uma política do atual governo que se deve, por um lado, a uma lógica histórica. Apesar de qualquer desconfiança do regime, Cuba não pode se manter à margem do desenvolvimento global, ainda mais numa época em que muitos cubanos saem do país e têm acesso a outras realidades e tecnologias. Um incremento da conectividade significa ganhos de várias maneiras: sociais, econômicos (os preços de conexão não são baratos para a média da população) e políticos.”

Jornalista cubano, correspondente da revista OnCuba, que busca ser uma ponte de comunicação entre Cuba e EUA

Por Liber Puente Baró

Responsabilidade compartilhada

“Decidir ampliar as oportunidades legais dos cubanos para se conectarem à internet é algo muito bom e positivo em relação ao acesso universal à rede. Creio que mais cubanos poderão desfrutar do serviço de internet nas casas. Com essa medida, o governo está compartilhando a responsabilidade de ampliar a infraestrutura no que se conhece como a última milha de telecomunicações para poder avançar mais rapidamente e incrementar a quantidade de pessoas com acesso regular.

Engenheiro de Havana, diretor da empresa particular TostoneT, que fornece serviços de informática e de telecomunicações em Cuba

Por Elaine Díaz Rodríguez

Entre a abertura e o bloqueio

“Em certo sentido, a decisão de possibilitar acesso à internet via wi-fi em residências é uma abertura, pois legaliza práticas existentes. No entanto, vejo que as medidas, da maneira como estão anunciadas, limitam o alcance do benefício, bem como os equipamentos que podem ser utilizados pelas redes comunitárias. O conteúdo já bloqueado, na maioria dos sites de meios de comunicação, seguirá inacessível. Como em Cuba existe somente um provedor, mesmo que se ampliem as rotas de acesso e a quantidade de usuários, o controle sobre o conteúdo permanecerá no mesmo local.”

Diretora da organização jornalística sem fins lucrativos Periodismo de Barrio, sediada em Havana