Correio braziliense, n. 20503, 10/07/2019. Opinião, p. 11

 

A anatomia de um feito histórico

Jorge Fontoura

10/07/2019

 

 

Como no lema dos inconfidentes, antes tarde do que nunca, após 20 anos de inconclusivas negociações, finalmente, firmou-se Acordo de Livre-Comércio entre Mercosul e União Europeia, o que deve ser celebrado, posto que atraso histórico, com ocasiões perdidas a lamentar. Trata-se do mais impactante acordo do gênero, a unir pelo comércio não países, mas blocos econômicos, 760 milhões de habitantes, 32 estados, dois continentes, muitas das maiores economias do mundo; um sem número de oportunidades de instantâneo progresso, a possibilitar efeitos imediatos no clima econômico, com melhor distribuição de renda e bem-estar econômico e cultural, tanto deste como daquele lado do Atlântico.

No que concerne a condições de consumo e de acesso à qualidade, com mais oferta e menos preço, desde prestações públicas até bens e serviços, em átimo de tempo emergirá a percepção do atraso a que nos submetemos. Com isso, o cidadão, que é também consumidor, contribuinte e eleitor, será fatalmente obrigado a perguntar: por que não se fez isso antes?

Nos últimos 20 anos, tanto na cátedra quanto em inúmeros artigos de opinião, também fizemos perguntas, diante da insensatez que se impunha. Decerto a Europa e o Cone Sul da América, com identidades e perfis complementares e não competitivos, salvo interesses mesquinhos, tinham tudo para criar espaço econômico comum. Tudo nos unia, porém algo que haverá de ser estudado, como se faz nos acidentes aéreos, nos separou.

Como o tempo das celebrações não deve ser o tempo dos sumários de culpa, cumpre, por ora, tão somente exultar que prevaleceu a razão e o bom senso, e que infinito espaço de oportunidades e de vantagens comuns agora se projeta, com abertura comercial de fato, sem discursos e promessas de protocolo.

Em termos técnicos e jurídicos, o macroacordo conquistado, o maior do comércio internacional, a fazer confluir história e geografia, só foi possível pela consolidada existência da personalidade jurídica do Mercosul, derivada da União Aduaneira tão criticada, que, em visão rasteira, servia apenas para prender o Brasil a seus vizinhos. Em verdade, com incapacidade técnica e preconceito desavisado, deixou-se de prover efetivo progresso, com o protecionismo fácil do discurso açucarado. Faltaram estadistas a confrontar interesses menores, pelo bem comum, em prol de desígnios e necessidades das próximas gerações.

Deixando as vantagens econômicas, para além do tilintar das moedas há, ainda, potencial patrimônio de conquistas e de riquezas imateriais que só a integração permite. Com o pragmatismo dos governos, como vitória da diplomacia, da negociação e do diálogo, abrem-se canais extraordinários, a permitir a promoção de valores mais profundos, da integração dos povos e de suas sociedades, a engrandecer as nações e não ao contrário.

Resta, por fim, crer nas vantagens da política de blocos, na abertura comercial, como garantidora da paz e do desenvolvimento tão necessário, em especial para o Brasil, país rico mas de povo pobre, ainda que gigante na economia e na história, imenso em seu patrimônio humano, jurídico e cultural. Chegar-se como bloco, em última análise, a entendimento de tal magnitude, em época tão conturbada, demonstra a assimilação de lições da história, privilegiando-se abertura comercial, com políticas consequentes, isentas de qualquer crítica minimamente considerável.

Agora, a velocidade da implementação do acordo por certo será surpreendente, com a urgência que o tempo requer, com as expeditas confirmações legislativas nacionais deste lado, quatro vozes, e comunitária daquele, uma só voz. Não há, quanto ao presidente Macron, com suas declarações, que se preocupar com o jogo de cena da política, a lidar com setores inconformados com a perda de privilégios, dos sindicatos medievais e das paróquias agrícolas da França profunda. A história urge.

Deste lado, a atuarmos como bloco econômico, nós, o Mercosul, a comprovar que — apesar dos pesares —, sim, dispomos de dimensão e altura de nações, é oportuno lembrar vizinho ilustre, o estadista argentino, Juan Bautista Alberdi, prócer do pensamento liberal do século 19, quem afirmava: “Cada restricción comercial que sucumbe, cada libertad que se levanta, cada frontera que se allana, son conquistas que hace el derecho de gentes en el sentido de la paz, más eficazmente que por los mejores libros y doctrinas”.