Correio braziliense, n. 20522, 29/07/2019. Mundo, p. 12

 

Alianças em transição

Silvio Queiroz

29/07/2019

 

 

O Brasil leva para o primeiro teste diplomático de peso no governo Jair Bolsonaro, dentro de pouco mais de dois meses, um programa que consolida e sintetiza a reorientação impressa desde janeiro à política externa — em várias frentes. Em outubro, o país se apresenta aos parceiros das Nações Unidas em busca de mais um mandato de três anos no Conselho de Direitos Humanos. Chegará sob observação crítica de aliados tradicicionais no tema, nas últimas duas décadas, como os países europeus e mesmo os Estados Unidos, depois de uma série de votações recentes nas quais o país se alinhou com monarquias reacionárias e regimes autoritários, em especial do Oriente Médio e do mundo islâmico, em votações nas quais estavam em jogo decisões relativas a direitos sexuais e reprodutivos, igualdade de gêneros e à condição da comunidade LGBT.

Entre 24 de junho e 12 de julho, foi essa a orientação básica seguida pela embaixadora Maria Nazareth Farani Azevêdo, que representa o Brasil na sede da ONU em Genebra, durante a sessão anual do Conselho de Direitos Humanos (CDH).  O país acompanhou Paquistão, Afeganistão, Arábia Saudita, Egito, Somália e outros no voto para excluir de uma resolução o termo “educação sexual” — proposta que acabou derrotada pela maioria liderada pelo bloco ocidental. Em outra decisão, alinhou-se novamente aos sauditas na defesa do papel dos pais em questões relacionadas com o casamento de meninas, muitas vezes arranjado pela própria família.

Como resultado, o documento oficial no qual é apresentada a candidatura brasileira ao novo mandato no CDH substitui a menção à defesa dos direitos dos LGBTS — objeto de uma proposta pioneira do país, em 2003, sobre Direitos Humanos e Orientação Sexual — por políticas em defesa da família definida como união entre homem, mulher e filhos. Não contempla a denúncia da tortura nem a proteção aos imigrantes.

“É uma posição extremamente negativa, por vários fatores”, avalia o professor Juliano da Silva Cortinhas, do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de Brasília (UnB). “O debate sobre os direitos humanos evoluiu muito na última década, e o país assumiu posições de vanguarda”, lembra o estudioso.”Essa posição tem sido muito criticada por países do norte da Europa, principalmente, que lideram o Ocidente nessa questão.”

Ao se distanciar no tema dos parceiros com os quais veio caminhando desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990, para se aliar às posições das monarquias conservadoras do Oriente Médio e de países como Indonésia e Filipinas, o Brasil não chega a comprometer a reeleição. São necessários os votos favoráveis de 97 dos 194 países-membros da ONU, e a Venezuela é o único outro país que se candidatou a uma das duas vagas reservadas à América Latina no CDH. O risco para a diplomacia brasileira é enveredar pelo viés negativo: em 2008, o país foi eleito com 175 votos; obteve 184 em 2012; mas recuou para 137 em 2016.

Qual Ocidente?

Questionado sobre o distanciamento em relação aos aliados europeus e outros no âmbito dos direitos humanos internacionais, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, sustenta que o governo Bolsonaro se coloca na defesa “dos direitos humanos reais de pessoas reais, e não de coisas abstratas”. Na avaliação do chanceler, expressa em entrevista recente à tevê britânica BBC, o Brasil vinha se portando, no CDH, como quem “procura se pautar por aquilo que não desagrada ninguém, que procura ver ‘se eu posso dizer isso ou aquilo’, que se limitava dentro do politicamente correto”.

Um diplomata europeu que serviu em Brasília até o começo do governo Dilma Rousseff lembrou ao Correio as críticas que fez na época à diplomacia brasileira, em especial no tema dos direitos humanos, por conta da tolerância para com regimes como os do Irã e da Venezuela. Ele vê agora uma tendência preocupante. “Nós costumávamos dizer que o Brasil não podia o tempo todo querer ser amigo de todos, que em alguns momentos é preciso escolher...mas eu não imaginaria que a escolha pudesse ser essa”, confessou.

O chanceler brasileiro, da sua parte, reafirma os “valores ocidentais e cristãos” como âncora do governo Bolsonaro. “Ocidente não é necessariamente aquilo que determinados países ocidentais defendem nas Nações Unidas”, argumenta. Para o professor Cortinhas, a aparente dicotomia entre a proclamação do ministro e os desencontros no CDH tem raiz na construção da política externa do novo governo. “Não existe uma base programática e conceitual. É totalmente ideológico: em questões econômicas, se aproxima dos países ocidentais; nas sociais, fecha com ditaduras do Oriente Médio.”

Meio século de acomodações

Como a política externa brasileira oscilou nas últimas décadas

Alinhamento automático

O regime militar instalado após o golpe de 1964 assumiu, inicialmente, uma postura de apoio às posições dos Estados Unidos, no contexto da Guerra Fria e do enfrentamento com a União Soviética. Rompeu relações com Cuba e apoiou a intervenção militar americana na República Dominicana, em 1965. A orientação foi resumida pelo então embaixador em Washington, o político da UDN Juracy Magalhães, que proclamou:

“O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”.

Pragmatismo responsável

A partir da posse do general Ernesto Geisel, em 1974, a orientação passa por substancial reconversão. Em meio à crise do petróleo, desdobramento da guerra árabe-israelense de 1973, o país se distancia da postura pró-israelense da Casa Branca. Na África, apoia a independência das ex-colônias portuguesas — Angola, Moçambique, Cabo Verde e Guiné-Bissau — e é pioneiro nos governos formados por movimentos nacionalistas próximos à União Soviética, combatidos pelos EUA.

Liderança regional

No primeiro governo civil pós-ditadura, o presidente José Sarney alcançou com a Argentina um acordo pelo qual os dois países, até então rivais na América do Sul, renunciaram explicitamente às armas nucleares e optaram pela integração. Como resultado, surgiu o Mercosul, formalizado em 1991, já no governo de Fernando Collor.

Globalismo

No governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), o Brasil começa a se projetar em temas globais. Em particular, hospeda a mais importante conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente, a Rio-92, matriz do Protocolo de Kyoto (2005) e dos atuais Acordos de Paris, que determinam metas para os diversos países no enfrentamento das alterações climáticas.

Sul-Sul

A política de inserção do país no cenário mundial sofre nova inflexão com a chegada ao poder de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003. O Brasil passa a privilegiar as relações com América Latina, África e Oriente Médio e investe na construção de foros como o Ibas (com Índia e África do Sul) e Brics (com os mesmos dois parceiros, mais Rússia e China). Chega a mediar um acordo sobre o programa nuclear iraniano, em 2009, mas a proposta é rejeitada e atropelada pelos EUA.

Realinhamento

O governo de Jair Bolsonaro aprofunda a reorientação externa iniciada por Michel Temer, após o impeachment de Dilma Rousseff, e proclama o realinhamento explícito do Itamaraty com a política externa dos EUA de Donald Trump. Apesar do acordo comercial com a União Europeia, e de professar um compromisso com os “valores ocidentais”, assume agenda ideológica de direita em foros internacionais e se alia a regimes conservadores islâmicos em assuntos sociais, como a questão de gênero.

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Ziguezague na arena geopolítica

29/07/2019

 

 

 

 

O Oriente Médio é outro cenário no qual a política externa do governo Bolsonaro se apresenta com a aparência de uma contradição. De um lado, sinaliza uma clara aproximação com Israel, a ponto de ter ensaiado a mudança da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém. A ideia, lançada pelo presidente ainda em campanha, reafirmada na transição e novamente nos primeiros meses de mandato, chegou a causar estremecimento com países árabes e ameaças de retaliação comercial.

Mesmo no Conselho de Direitos Humanos, onde tem se alinhado com regimes árabes e islâmicos, a diplomacia basileira emitiu votos inéditos contra resoluções que condenavam Israel pelo tratamento dispensado aos palestinos. E o aparente ziguezague tem como linha de continuidade uma inflexão clara em relação ao Irã, expressa no recente impasse com os navios cargueiros que passaram semanas retidas em Paranaguá. No pano de fundo, outro traço marcado do governo Bolsonaro: o alinhamento explícito com os Estados Unidos, que impõem sanções ao regime islâmico de Teerã.

“A questão do governo Donald Trump com o Irã tem relação com o impasse nuclear e a segurança dos EUA, e isso tem importância para eles”, explica o professor Juliano Silva Cortinhas, do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da UnB. É por isso que, na sua análise, Washington não vê como distanciamento a guinada do país para posições de matriz religiosa no âmbito dos direitos humanos. “Trump não está preocupado com essas questões.”

A reorientação do Planalto e do Itamaraty para a aliança prioritária com Washington — expressa na indicação do deputado Flavio Bolsonaro (PSL-SP), o filho “03”, para assumir a embaixada brasileira — é apresentada pelo ministro Ernesto Araújo como parte da reinserção do Brasil no que chama de “aliança liberal conservadora”. O chanceler associa esse movimento a uma tendência recente de contestação ao sistema multilateral, expressa por Trump e por governos da nova direita europeia, como os da Itália e da Hungria, dois dos destinos de sua recente viagem ao continente.

“O Brasil é parte de um movimento de recuperação do papel da nação como ator no sistema internacional”, disse na entrevista à BBC. É por essa perspectiva que Araújo vê a aguardada concessão ao Brasil do status de aliado preferencial dos EUA fora do âmbito da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar ocidental. “Isso vai trazer benefícios para a recapacitação da nossa capacidade miltar, que foi algo negligenciado em governos recentes”, argumenta o chanceler. “Faz parte das relações internacionais ter capacidade de dissuasão e de defesa do território.” (SQ)