Correio braziliense, n. 20523, 30/07/2019. Cidades, p. 19

 

Trem precisa de integração

Adriana Bernardes

Renato Alves

30/07/2019

 

 

Fora dos trilhos » Para viabilizar o transporte de passageiros em uma linha férrea entre o DF e Goiás, é necessário construir estrutura rodoviária para levar usuários e cargas aos vagões. Falta de política de Estado de longo prazo e pressão da indústria automobilística também são obstáculos

Ao mesmo tempo que apontam o transporte sobre trilhos como uma das melhores saídas, especialistas em mobilidade elencam uma série de barreiras para tirar do papel um projeto de trem de passageiros no Distrito Federal e em Goiás. Um deles, o alto custo. O Expresso Pequi, que os governadores anunciavam por R$ 6,5 bilhões em 2003, estava orçado em R$ 9,5 bilhões em 2017, última vez em que se falou publicamente do projeto, como revelou ontem o Correio. Valor seis vezes maior do que o do Estádio Nacional Mané Garrincha, construído de forma superfaturada em um esquema criminoso, como aponta a Operação Lava-Jato. Sem uma política de desenvolvimento regional e integrada, o volume de passageiros jamais compensaria tal gasto no modal de transporte, segundo estudiosos.

Os investimentos nos sistemas metroferroviários urbanos custam até 10 vezes mais do que os sistemas rodoviários, mesmo os de alta capacidade, os chamados BRTs. Um dos caminhos para viabilizar a mobilidade por meio dos trilhos é promover o fluxo de mercadorias e de gente nos trens, de acordo com Joaquim Aragão, doutor em políticas de transporte e professor do curso de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB). “Estamos com recursos escassos e isso exige uma nova abordagem na concepção dos projetos, uma relação mais forte entre as propostas de desenvolvimento regional e do transporte ferroviário. Porque ele (transporte), em si, não é rentável”, aponta Aragão.

A ferrovia que liga Brasília a Goiás e à região Sudeste não coincide com o desenvolvimento dos núcleos urbanos no trecho entre Brasília e o Entorno. Boa parte da linha passa em áreas rurais ou em meio a bairros muito afastados das cidades goianas vizinhas do DF. Portanto, para reativar o transporte de passageiros na linha férrea que parte da Rodoferroviária de Brasília é necessário pensar em projetos que levem usuários e mercadorias até os vagões. Ruas, avenidas, rodovias e terminais de carga e passageiros teriam de ser construídos para abastecer os trens, o que elevaria ainda mais o custo de qualquer plano em caso de aproveitamento da antiga linha como propõe a atual administração do DF.

Quanto à largura dos trilhos (bitola métrica), um problema levantado desde a chegada do primeiro trem de passageiros a Brasília, há 50 anos, Aragão diz não haver obstáculo. “O Japão está cheio de trem de passageiros de bitola métrica, como as daqui, e os trens são rápidos e seguros. O problema não é largura entre os trilhos e, sim, o traçado curvilíneo das nossas ferrovias”. Ou seja, para ter um trem com velocidade média ou rápida ligando Brasília e Goiânia, como anunciado por governadores do DF e de Goiás desde 1999, seria necessário construir outra via férrea, o que demandaria pontes e túneis, encarecendo ainda mais o projeto.

Na avaliação do pesquisador, para ser viável, a reativação dos trens de passageiro e a expansão da malha destinada ao transporte de carga passará pela criação de modelos de concessão ou de Parcerias Público Privadas (PPP). “Estamos desenvolvendo um conceito de engenharia territorial. Uma parceria de segunda geração onde se coloca ao lado do contrato de PPP ou concessão de ferrovia (por exemplo) um outro tipo de conceção auxiliar para investidores que terão como função promover o desenvolvimento econômico daquela determinada região. Um modelo em que um sistema impulsiona o outro”, explica Aragão.

Desinteresse

Transportar cargas pelos trilhos dá mais lucros do que levar gente. E este é um dos motivos pelos quais o modal ferroviário para passageiros não avança no Brasil, segundo o professor de sistemas de transporte do Centro Universitário Estácio de Sá (DF), Artur Morais. Ele aponta ainda o alto custo de implantação, a falta de política de Estado de longo prazo e a força da indústria automobilística. “Nenhum governante inicia um projeto para que as pessoas possam usufruir em 20 anos. É tudo pensando no próximo mandato”, critica o especialista.

Morais, que também é engenheiro e pós-doutor em transportes pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), lembra que na Europa e nos Estados Unidos o trem começou a ser implantado na Revolução Industrial, quando esta era a alternativa mais viável. “Era o rio ou o trem. Ficava mais barato fazer trilho do que mudar o curso do rio. Quando o Brasil começou a crescer, com desenvolvimento da indústria, já havia rodovia. E nenhum interesse em investir no trilho, que era mais caro. A opção dos governantes foi pelo modal rodoviário, mais barato. E é assim até hoje”, observa.

No Brasil ainda há outro entrave quando se fala em infraestrutura para levar gente e carga. Os projetos são como uma colcha de retalhos e, historicamente, não levam em conta outros modais. Quando não se coloca todas as opções na mesa, um sistema concorre com o outro, reduzindo a eficiência de ambos, atrasando o retorno dos investimentos. “A infraestrutura de transporte precisa gerar economia ao longo dela, com a criação de polos comerciais, agrícolas e econômicos. Isso gera emprego, comércio e demanda de passageiros. A longo prazo se paga. Mas é preciso acabar com essa história de pensar a infraestrutura apenas como um meio para escoar produtos e pessoas”, finaliza Artur Morais.

O que diz a lei

Acesso aos transportes

A Política Nacional de Mobilidade Urbana foi instituída em 2012, pela Lei Federal nº 12.587. Ele define um conjunto de princípios e de diretrizes para o setor. Desenvolvimento sustentável das cidades, nas dimensões socioeconômicas e ambientais; equidade no acesso dos cidadãos ao transporte público coletivo; e eficiência e eficácia na prestação do serviço estão entre os princípios destacados no texto. Já as diretrizes definem ainda a integração com a política de desenvolvimento urbano e respectivas políticas setoriais de habitação, saneamento básico, planejamento e gestão do uso do solo no âmbito dos entes federativos e prioridade dos modos de transportes não motorizados e dos serviços de transporte público coletivo.

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Ganho social compensa custo

30/07/2019

 

 

 

 

Mas se os projetos ferroviários geralmente apresentam baixa (às vezes, nenhuma) viabilidade financeira, por que os governos deveriam investir recursos escassos dos orçamentos neles? Aí entra a questão social.

“São os benefícios sociais que justificariam a implementação desses projetos. No caso ferroviário, há muitos benefícios que não são computados nas análises financeiras que justificariam a inversão de recursos por parte da sociedade (governos)”, explica Carlos Henrique R. Carvalho, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), engenheiro civil e mestre em engenharia de transportes.

Carvalho lembra que morrem mais de 40 mil pessoas por ano em acidentes rodoviários no Brasil. Os acidentes ferroviários são extremamente raros e praticamente não há registros de mortes quando ocorrem, o que justificaria esses investimentos do ponto de vista de redução dos danos do sistema de transporte brasileiro.

“O Ipea estimou em cerca de R$ 50 bilhões por ano o custo dos acidentes de trânsito no Brasil. Se houvesse uma redução pela metade das mortes por ano pela substituição das viagens rodoviárias pelas ferroviárias, por exemplo, poder-se-ia viabilizar investimentos superiores a R$ 200 bilhões em ferrovias em 10 anos”, pondera o especialista.

O pesquisador explica, ainda, que os ganhos ocorreriam no campo da  logística. “O Brasil tem alto custo logístico (superior a 10% do PIB) em função do transporte de carga ser concentrado nas rodovias. Os países com menores custos logísticos do mundo (inferiores a 7% do PIB) são justamente aqueles que apresentam melhor equilíbrio na sua matriz modal, com maior participação ferroviária e hidroviária no transporte dos bens consumidos e exportados. Por isso é importante a presença do estado nesses investimentos.”

No caso urbano, os investimentos nos sistemas metroferroviários chegam a custar 10 vezes mais do que os sistemas rodoviários, mesmo os de alta capacidade (sistemas BRT). Assim os políticos acabam preferindo investir nesses sistemas mais baratos e com implementação mais rápida. “O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) da Mobilidade por ocasião da Copa do Mundo (de 2014) mostrou claramente essa preferência por parte dos prefeitos das capitais contempladas”, afirma Carvalho. O DF investiu R$ 704,7 milhões no BRT entre Santa Maria e a Rodoviária do Plano Piloto. A obra foi inicialmente contratada por R$ 587,4 milhões

O especialista diz que, geralmente, trens de passageiros de alta velocidade competem com o transporte aéreo. Assim, quando esse sistema está saturado e necessita de ampliação de aeroportos, discute-se como alternativa a ligação ferroviária de alta velocidade. “Em São Paulo, por exemplo, já se discute a construção de um terceiro aeroporto, e a alternativa seria a linha de trem-bala entre Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro. Mas esse não é o caso da ligação Brasília-Goiânia, pois essa ligação aérea é de baixa demanda em relação a outras ligações de capitais brasileiras”, finaliza Carvalho.

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Planalto nos trilhos

30/07/2019

 

 

 

Palavra de especialista

Embora virtualmente todos os autores que se debruçaram sobre o tema sempre tenham afirmado a indissociabilidade entre mobilidade e planejamento urbano e/ou regional, o mundo real impôs a lógica sequencial do “prever e prover”: a infraestrutura e os serviços de transportes são dimensionados para atender a uma demanda que de existe ou está na iminência de existir. É como se o que há de mais nobre no planejamento tivesse sucumbido à arte de remediar.

Essa forma de atendimento à demanda é marcadamente característica de sistemas de transporte sobre pneus, cujos veículos, na grande maioria dos casos, compartilham a infraestrutura rodoviária com outros modos (vias exclusivas, como as de BRTs, são exceções que confirmam a regra, principalmente nas ligações interurbanas). Sistemas ferroviários costumam ser de outra natureza — por implicarem altos investimentos iniciais em infraestrutura, costumam cumprir um papel mais estruturante das ocupações do que responsivos às demandas.

Em um país como o nosso, de pouca tradição em planejamento, a infraestrutura instalada, ainda que requerendo algum tipo de adequação para entrada em efetiva operação, é um ativo cuja não utilização constitui grave caso de desperdício de recursos públicos. Por outro lado, a tradição brasileira é forte no rodoviarismo — o que pode ser explicado segundo a lógica acima exposta.

Somado à escassez de fontes para investimentos, não há o que justifique a não utilização da infraestrutura ferroviária entre Brasília e Luziânia para o deslocamento da população que faz esse trajeto de carro ou ônibus. É uma iniciativa que requer muito pouco para o benefício capaz de gerar. Uma segunda etapa, com um esforço um pouco maior de implantação, poderia contemplar a ligação com Goiânia, fomentando uma mudança muito salutar de hábitos de viagem no coração do Planalto Central.

Paulo Cesar Marques da Silva Professor do Dep. de Engenharia Civil e Ambiental da UnB