O Estado de São Paulo, n. 46077, 13/12/2019. Espaço aberto, p. A2

 

Autonomia e regulação das universidades

Simon Schwartzman

13/12/2019

 

 

O mundo dá voltas. No início da Presidência Lula, o governo criou uma comissão para desmontar o sistema de avaliação de cursos superiores criado pelo ministro Paulo Renato Souza, no governo Fernando Henrique Cardoso. Em vez de avaliação externa, o famoso Provão, o que se propunha era a autoavaliação, feita de forma autônoma pelas universidades, e a criação de um conselho com representantes de professores, estudantes, funcionários, pessoas de notório saber e funcionários do Ministério da Educação (MEC) para supervisionar o novo sistema.

Acabou dando o contrário: o Ministério da Educação ressuscitou o Provão, com o nome de Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), juntou os resultados com outros dados para produzir alguns índices “provisórios”, que viraram definitivos, e criou um sistema caro e complexo de avaliadores para ver se as instituições estavam cumprindo uma série de requisitos formais. A autoavaliação foi transformada num relatório burocrático que as instituições preparam para ser arquivado, sem ninguém ler. Agora se fala novamente em implantar a autoavaliação, que substituiria a avaliação externa, antes repudiada e depois adotada pelo PT.

O fato é que o Ministério da Educação simplesmente não tem como avaliar regularmente e de forma confiável 2.500 instituições, 38 mil cursos em mais de 80 áreas de conhecimento e 8 milhões de estudantes. O Enade, sem distinguir o que é bom, aceitável ou ruim, e do qual os estudantes participam sem maior interesse, não serve para muito e tem sido, na prática, desvalorizado pelo próprio ministério, ao dar peso muito maior a outros indicadores em seus índices; e o processo de credenciamento e recredenciamento das universidades é um ritual que não ajuda as instituições a se repensar, nem atinge as universidades públicas. Não há nenhuma evidência de que o custoso processo de avaliação in loco feita por comissões de avaliadores externos esteja contribuindo efetivamente para a melhora da educação superior do País.

Não há dúvida que as instituições de ensino, como quaisquer outras, precisam se avaliar permanentemente, verificando se estão cumprindo seus propósitos e usando bem os seus recursos. Mas sem estímulos externos as instituições tendem a se acomodar. Num mercado competitivo, esse estímulo é a concorrência. Em instituições que desempenham atividades de interesse público, o estímulo deve vir de agências reguladoras externas. Na educação superior, o mercado é formado não só pelos estudantes que pagam matrículas para as instituições privadas, mas pelas preferências dos que se matriculam nas públicas, das agências de governo que distribuem recursos e dos empregadores que depois decidem quem vão contratar. Além do mercado e dos governos, as universidades precisam responder aos estímulos que vêm das comunidades científica e profissional, que, dentro e fora das instituições, têm padrões de qualidade que consideram necessários para as atividades de pesquisa e ensino.

Esses três componentes – mercado, governo e a comunidade acadêmica e profissional – formam o famoso “triângulo de Clark”, que, puxando mais para um ou outro vértice, define o espaço dentro do qual os sistemas de educação superior devem ser regulados. Quando só um deles predomina – governo sem participação da comunidade acadêmica nem competição, mercado competitivo sem governo nem participação da comunidade acadêmica, controle absoluto da comunidade acadêmica sem regulação externa nem competição –, a educação superior sofre. E sofre ainda mais quando os vértices do triângulo são substituídos por seus lados perversos – o governo pela burocracia, a comunidade acadêmica pelas corporações, a competição por qualidade pela competição pelo facilitário das credenciais e do lucro como primeira prioridade.

É preciso criar mecanismos para incentivar, estimular a autoavaliação não como um fim em si mesmo, mas como resposta aos estímulos das políticas públicas, da comunidade acadêmica e do mercado. É preciso descentralizar, dar mais autonomia às instituições e aos sistemas de ensino, envolver mais fortemente a comunidade acadêmica no processo e informar melhor a sociedade sobre o desempenho efetivo das diversas instituições e dos cursos. Ao invés de um sistema de avaliação concentrado no Ministério da Educação, pensar numa pluralidade de agências avaliadoras, por região, área de conhecimento ou tipo de instituição. Em vez de credenciar instituições, o Ministério da Educação, ou melhor ainda, uma nova agência reguladora, credenciaria as agências avaliadoras. Dar menos importância a indicadores de insumos (instalações, características dos professores) e cada vez mais aos resultados, incluindo a empregabilidade dos formados, a partir da integração dos dados de diversas fontes como os censos escolares, a Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e outras. Em vez de avaliar a conformidade dos cursos com as diretrizes curriculares, dar liberdade para que as instituições definam seus próprios objetivos e sejam avaliadas pela capacidade que tenham de fazer o que anunciam.

Passar do atual sistema para um novo não será simples, mas não é impossível, se as instituições de ensino se mobilizarem para isso. O mais importante é garantir que esse novo sistema seja reconhecido pela sociedade e pela comunidade acadêmica como legítimo e válido, da mesma maneira que a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) é reconhecida na a área de pós-graduação. E depois, que os resultados das avaliações se tornem amplamente conhecidos e possam ter impacto efetivo não somente na autorização de funcionamento de instituições privadas, como é hoje, mas também nas políticas de financiamento público da educação superior.

______________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Um ano pela extrema direita

Fernando Gabeira

13/12/2019

 

 

Hoje, 13 de dezembro de 2019, até que aqui tudo bem. Em termos, quero dizer. Não decretaram o AI-5 nem massas se revoltaram, como no Chile, apesar dos apelos. O drama se fragmenta em morte de adolescentes em Paraisópolis e assassinato de índios guajajaras no Maranhão.

As pessoas compram presentes e se preparam para o Natal, como o fizeram em dezembro de 1968. E os articulistas fazem o balanço de 2019.

Há muitas formas de analisar o primeiro ano de Bolsonaro no poder. Os mais otimistas veem a economia se recuperando, saúdam a redução dos índices de criminalidade, aprovam a gestão na infraestrutura. Não são apenas essas variáveis que definem o País. Se olhamos de fora para dentro, veremos que o prestígio internacional do Brasil caiu, embora não tenha ainda atingido os negócios.

Bolsonaro começou duvidando da relação com a China. Disse algumas coisas atravessadas, como os chineses comprando o Brasil, mas a resposta de lá foi tranquila. Trabalham com projetos de longo prazo, não se importam muito com os arroubos de estreantes. Agora, no final do ano, Bolsonaro afirmou que serão positivas as relações futuras Brasil-China e os dois países até já anunciam o lançamento de um satélite.

Bolsonaro começou amando Trump. Reaproximou o Brasil dos EUA e sempre esperou muito desse romance. Ao não ser indicado para a OCDE pelos EUA, houve um certo desencanto. Mas a verdade é que o próprio governo brasileiro superestimou a promessa. Não era imediata: a Argentina estava na frente.

Outro grande desencanto veio com o anúncio de Trump de taxar o aço e o alumínio do Brasil. A decisão econômica não é das mais interessantes para os americanos, apesar de seu pequeno valor eleitoral. Mas não foi tanto pela economia que Trump desencantou os admiradores locais, ele acusou, injustamente, o Brasil de manipular o câmbio, e nem se deu ao trabalho de ligar antes para Bolsonaro.

O olhar de fora para dentro, focado nas ideias presidenciais, revela Bolsonaro em toda a sua fragilidade. Para começar, aquele episódio do golden shower foi só um ensaio pelo lado selvagem do governo. Muitos outros tropeços iriam sacudir nossa imagem e desaguar no recorde de 37 denúncias contra o Brasil na ONU.

A questão ambiental foi decisiva. Bolsonaro foi eleito e começou o ano denunciando indústria de multas e combatendo a fiscalização na Amazônia. Aliás, o fiscal que o multou na Reserva de Tamoios, em Angra dos Reis, foi demitido. Mas tudo o que dizia sobre meio ambiente acabou se tornando mais dramático nas queimadas da Amazônia. Ali, confrontado com a crítica internacional, em muitos momentos derrapou. Um deles foi insultar Brigitte Macron, a mulher do presidente da França.

O longo e preocupante vazamento de óleo nas praia do Nordeste pode ter-lhe dado uma rápida trégua em termos internacionais, mas a demora em agir e o aparente distanciamento de Bolsonaro acabaram por aumentar a desconfiança dos brasileiros.

Ao deixar o ringue do confronto entre presidentes, Bolsonaro voltou-se para o show business e escolheu Leonardo DiCaprio como rival, acusando-o de financiar as queimadas na Amazônia.

Nestes dias de dezembro, pelo menos esqueceu-se de assinar o AI-5 para se dedicar a combater Greta Thunberg, a adolescente sueca: pirralha, pirralha.

Houve quem achasse semelhanças entre Hugo Chávez e Bolsonaro. Mas este parece habitar um outro mundo: o programa de TV Chaves.

Visto de dentro, Bolsonaro leva uma guerra cultural que é uma extensão de seu combate externo contra os defensores do meio ambiente. Ele comanda um governo da pós-verdade. Jesus sobe na goiabeira, Theodor Adorno fazia as letras para os Beatles, o rock leva ao aborto, que, por sua vez, leva ao satanismo, e o responsável pela política teatral ofende um símbolo de nossa cultura, Fernanda Montenegro. Não bastasse, o novo presidente da Fundação Palmares vê com bons olhos a escravidão e acha que o Movimento Negro deveria acabar. A luta cultural tornou-se um vale-tudo, com golpes abaixo da cintura das mínimas evidências: o governo adota a pós-verdade.

Tudo isso também funciona como manobra para esconder o fracasso de Bolsonaro em conduzir a bandeira da anticorrupção, que lhe deu tantos votos. As denúncias sobre o laranjal do PSL e, sobretudo, o episódio de rachadinha envolvendo seu filho Flávio o levaram à defensiva nesse campo.

O partido de Bolsonaro esfacelou-se neste ano. Como descreveu Rodrigo Maia, todos nus querendo matar uns aos outros. O que parecia um movimento conservador disposto a recuperar uma certa dignidade da política se tornou uma troca de insultos, rebaixando-a a um inédito nível de grosseria.

Bolsonaro termina o ano com 30% de aprovação. Comparado com outros presidentes, sua rejeição é a maior no primeiro ano. Alguns analistas afirmam que ele manteve sua base. Mas, evidentemente, ela se estreitou. E esses índices são dinâmicos. Outros afirmam também que o Brasil é conservador, mas se esquecem de que está sendo conduzido por uma política de extrema direita. Num país profundamente influenciado pela cultura africana, marcado pela escravidão, até o mais simplório dos políticos percebe a tendência suicida do bolsonarismo.

Neste momento, a esquerda está perdida no seu labirinto. Mas um progressivo isolamento da extrema direita abre chance de ser contestada pelo centro ou pela própria direita mais moderada.

O ano acaba, outro começa. Visto de fora, o governo Bolsonaro não tem mistérios: é tosco e despreparado para a complexidade do País e do mundo.

Aqui dentro, como jogam muitos outros fatores, os mistérios se desfazem mais lentamente. Que vengan los toros de 2020. Em 13 de dezembro veremos quem e como politicamente sobreviveu.