O Estado de São Paulo, n. 46073, 09/12/2019. Espaço aberto, p. A2

 

Dia Internacional de Combate a Corrupção

Modesto Carvalhosa

09/12/2019

 

 

Neste mês de dezembro inúmeras manifestações e eventos marcam o Dia Internacional de C om bateàCorrupção.S obre esse grave delito, que afeta, empobrece, mantém na miséria emata milhões de pessoa sem todo o planeta, muito se poderia relatar trazendo uma lista significativa de medidas e de campanhas que no Brasil, em 2019, têm procurado neutralizar e mesmo destruir as instituições e as pessoas dedicadas ao seu combate.

Por outro lado, seria possível ressaltar o entusiasmado apoio que o povo brasileiro tem dado aos agentes públicos encarregados da difícil tarefa de enfrentar esse crime contra a humanidade de cujas vítimas não conhecemos o rosto, mesmo porque pertencem a nada menos que dois terços da humanidade. Os efeitos devastadores da corrupção são evidentes em todo o mundo. Por isso é necessário pensar nas causas desse flagelo.

No âmbito dos diversos países verifica-se uma diferença grande na prática desse tipo de ilicitude. Nas nações civilizadas, com presença marcante da sociedade civil nos destinos do país e ordenamento jurídico fundado na ética e no interesse público, a corrupção é episódica e não sistêmica. Já nos países com fraca presença da sociedade civil, ou seja, coma onipresença do Estado, a corrupção é claramente sistêmica, ultrapassando as práticas criminosas das propinas para se instituir nas leis ena própria Constituição.

Afinal, o que é um fenômeno sistêmico? É oque cria, ele próprio, sua continuidade, permanência, persistência e expansão. Reproduz-se naturalmente. Essa corrupção sistêmica acaba por se tornar estrutural, fazendo parte dos fundamentos e das bases do Estado.

Nos países do Terceiro Mundo enos emergentes temos três espécies de corrupção sistêmica: a corrupção constitucionalizada, a legalizada e acrimina lizada.

E o que se entende por estrutural, nesse contexto?

São as bases institucionais que condicionam avida social, mediante o modelo político expresso no sistema normativo administrativo. No Brasil a corrupção é claramente sistêmica e, por isso, estrutural a partir exatamente do modelo institucional, como se pode ver na Carta de 1988.

Sem uma profunda reforma política e administrativa será muito difícil mudar a fonte da corrupção. Pode-se combatê-la eficientemente, como se tem feito no Brasil nos últimos cinco anos. Dificilmente, no entanto, teríamos bases estruturais capazes de mudar a cultura dessa prática criminosa, que destrói vidas, oportunidades e esperanças. Para tanto cabe desde logo lembrar a necessidade de extinção do foro privilegiado por exercício de função, fonte de impunidade que produz todas as práticas corruptivas dos potentados da política.

Quanto ao Supremo Tribunal Federal (STF), deve ser estabelecido que os ministros serão automaticamente nomeados pela regra do decanato, com um mandato de oito anos. Ou seja, as vagas serão preenchidas pelos ministros mais antigos em exercício no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A mesma regra de decanato valerá para os demais tribunais superiores. Nada de nomeação política, como atualmente. Também o STF terá competência unicamente de declaração de constitucionalidade das leis, deixando de ser uma instância recursal que trata de todas as demandas, incluídas as de habeas corpus.

A outra medida é proibir a reeleição para qualquer cargo eletivo nas eleições seguintes. A reeleição é nefasta por várias razões, principalmente por propiciar as mais variadas formas de corrupção.

Deve ser vedada a qualquer representante eleito a nomeação para cargo de ministro de Estado ou para qualquer outra função no âmbito do Poder Executivo. A mesma proibição se aplica nas esferas dos Estados e municípios.

Outra mudança estrutural necessária: o voto distrital puro, permitindo o controle dos eleitores sobre seus eleitos, inclusive com o direito de recall a cada dois anos, por ocasião das eleições gerais e municipais. Também as candidaturas independentes se impõem, para se dissolver a partidocracia instituída pela Constituição de 1988.

A eliminação do Fundo Partidário e do fundo eleitoral são medidas de moralização pública, fazendo com que os partidos políticos assumam o seu papel institucional e recobrem a sua relação com a sociedade civil e os seus eleitores, que deverão ser a única fonte de seus recursos. Outra providência constitucional imprescindível: a extinção das emendas parlamentares, fonte sistêmica de corrupção.

Por outro lado, o seguro de obra, de 100% do seu valor (performance bonds), adotado nos Estados Unidos desde l896, constitui o antídoto para a corrupção em obras públicas, pois quebra a interlocução direta dos agentes públicos com os empreiteiros licitantes e contratados. A seguradora assume, ademais, o prosseguimento da obra em caso de inadimplência da construtora.

Ainda no aspecto da administração do Estado, é fundamental que se declare que o direito adquirido não pode prevalecer sobre o interesse público no que tange aos agentes públicos. O Banco Mundial, no seu célebre relatório de 2017, apontou esse direito como o maior responsável pelos enormes e absurdos privilégios dos agentes políticos e administrativos em nosso país.

Nesse mesmo assunto, a extinção da estabilidade ampla, geral e irrestrita dos 13 milhões de servidores públicos se impõe, para que se possa estabelecer um regime de isonomia de direitos entre os que trabalham no setor público e no privado.

E, finalmente, o regime de transparência das atividades governamentais, a tempo presente e com leitura prévia, deve ser aprofundado com o sistema de robotização, capaz de abranger todos os setores da administração pública a um só tempo.

A lista não se esgota aqui. Contudo essas medidas acima devem ser adotadas para que o Brasil saia da lista dos países sistemicamente corruptos.

Uma nova Constituição cada vez mais se faz necessária.

___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Atos institucionais

Denis Lerrer Rosenfield

09/12/2019

 

 

A polêmica suscitada pelo deputado Eduardo Bolsonaro a propósito do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), respaldada depois pelo próprio ministro da Fazenda, é da maior gravidade por expor um pendor autoritário. Atos institucionais, como os que caracterizaram a ditadura militar de 1964, são derivados de uma ruptura institucional, a partir da qual um novo regime é estabelecido. Não são atos constitucionais, mas resultam da violência instaurada por um “golpe”, por uma “revolução”, ou qualquer outro nome que se queira dar. A questão reside em que são instrumentos jurídicos provenientes do uso da força, que rompe a ordem constitucional vigente. Dá para brincar com declarações desse tipo?

Não dá para compreender o AI-5 sem remontarmos aos atos anteriores, em particular o AI-1. A perspectiva histórica é importante. O primeiro ato do regime militar foi resultado de uma tomada de poder por via da ruptura institucional e constitucional. A quebra da ordem jurídica situa-se fora da Constituição, que se torna subordinada ao ato de força e à sua nova legalidade, que passa então a vigorar.

Em 1964, primeiro foi produzida a ruptura, depois a nova legalidade, sob a forma do AI-1. Consumada a tomada do poder, o jurista Francisco Campos, homem culto e competente, com longa ficha de serviços prestados ao presidente Getúlio Vargas, tendo redigido a Constituição de 1937, foi chamado pelo ministro da Guerra, Costa e Silva, para dar forma jurídica ao novo regime. Após uma conversa entre ambos, Francisco Campos sugeriu que não era necessário seguir a Constituição de então, pela singela razão de que ela não estava mais sendo cumprida, de qualquer maneira; uma alternativa legal seria mais condizente com a conquista do poder.

Segundo ele, o Brasil estava sendo conduzido por um novo governo de tipo revolucionário, que, como tal, seria fonte originária de uma nova legalidade. O novo poder era a origem mesma de uma nova legislação, não se subordinando a qualquer outra força ou posição constitucional. Ele se justificaria por si mesmo, bastando tão somente conferir-lhe um novo ordenamento jurídico.

O jurista tirou seu paletó, ocupou uma escrivaninha e ao amanhecer do outro dia o Ato Institucional n.º 1 estava redigido, com a colaboração de outro jurista, Carlos Medeiros Silva. O governo revolucionário passou a guiar-se por esse ato institucional e pelos outros atos que se seguiram.

O AI-5 foi ordenado e promulgado pelo mesmo general Costa e Silva, que nesse meio tempo se havia tornado presidente. O seu caráter “revolucionário”, de fonte geradora de uma nova legalidade, foi marcante. O habeas corpus foi suspenso para crimes considerados políticos, o presidente podia suspender o Congresso, o que logo foi feito, passando a legislar ele mesmo por decretos-leis, a censura prévia foi instaurada em jornais, revistas e outros meios de comunicação, o presidente podia intervir em Estados e municípios, entre outras medidas.

Logo, quando autoridades propõem um ato institucional para conter uma eventual – e imaginária – sublevação popular à maneira das manifestações de rua no Chile, eles estão “brincando” com uma ruptura institucional. Note-se que eles não defendem a manutenção da ordem por via constitucional, dado que nossa Carta Magna contempla instrumentos desse tipo, como a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o estado de sítio e o estado de defesa nacional. O primeiro, aliás, amplamente utilizado pelos governos anteriores na manutenção da ordem pública para combater a criminalidade, sendo o exemplo do Estado do Rio de Janeiro o mais conhecido. Observe-se ainda que todos eles, sobretudo os dois últimos, exigem trâmites constitucionais que pressupõem sua aprovação pelo Legislativo.

Consequentemente, a pergunta que se coloca é quem assumiria o poder gerador de novas leis, o da nova legalidade. As Forças Armadas têm mantido rigorosa postura constitucional, defendendo a democracia em nosso país. Não há nenhuma sinalização anunciando uma nova atitude. O seu desempenho é estritamente profissional, elas têm sido exemplares na defesa das instituições republicanas. Se não são elas candidatas a artífices da nova “revolução”, só sobrariam os que defendem a tal de “revolução cultural”, o círculo mais próximo do presidente. Isto é, o País passaria a ser governado pela ala ideológica do governo, fazendo tábula rasa do Congresso, das oposições, da liberdade de imprensa, concentrando todo o poder no Executivo e em seu grupo dominante.

A reação a tais declarações foi de tal monta que um recuo imediatamente se fez necessário. Não por virtude, mas pela pequena adesão suscitada, confinada aos núcleos digitais do bolsonarismo. Sem apoio, evidentemente, nenhum “ato institucional” seria possível, nem na opinião pública, nem na ação dos militares. Na verdade, foi um tiro no pé, expondo o vigor das instituições democráticas em nosso país.

O problema, porém, persiste. O mesmo governo que alberga posições radicais e antidemocráticas desse tipo é o que apresenta um arrojado programa de reforma do Estado mediante várias propostas de emenda constitucional e projetos de lei, trazendo à tona uma agenda liberal. Questões centrais são trazidas à discussão, sem medo das patrulhas ideológicas da esquerda. Se tudo o que está sendo proposto for aprovado pelo Congresso, estaríamos diante de uma verdadeira “revolução”, ao reconfigurar as relações entre a intervenção estatal e a economia baseada em relações concorrenciais, e não de “compadrio”.

O risco, porém, consiste em que a “revolução cultural” pode terminar por contaminar as transformações liberais. Em muito ajudaria o País o presidente Bolsonaro tomar uma decisão, posicionando-se firmemente pelas transformações econômicas e pelo redesenho do Estado, imprescindíveis para todos os cidadãos. A permanência da tensão entre ambas só ajuda os que pretendem manter o status quo.