O globo, n.31420, 16/08/2019. País, p. 04

 

Na mesa do presidente 

Jussara Soares 

Bruno Góes 

Jailton de Carvalho

16/08/2019

 

 

Sob pressão do Congresso de um lado e de sua base mais fiel e integrantes do Judiciário e do Ministério Público do outro, o presidente Jair Bolsonaro enfrenta uma divisão interna também na sua equipe para a análise do projeto que regulamenta o abuso de autoridade. O grupo considerado mais conservador acredita que o presidente não deveria vetar nenhum ponto em nome de manter bom relacionamento com o Congresso. Já os auxiliares da ala ideológica defendem o veto total, mas admitem que isso seria declarar uma guerra, o que poderia comprometer futuros projetos do Executivo. Há também os que defendem vetos pontuais.

O posicionamento do presidente sobre o tema vem sendo considerado nos bastidores a decisão mais difícil em quase oito meses de gestão. Representantes de entidades do Judiciário e do Ministério Público pediram a Bolsonaro o veto ao texto, clamor repetido em campanha nas redes sociais feita por parlamentares do PSL e militantes. Há temor que a lei sirva para enfraquecer ainda mais operações de combate à corrupção, como a Lava-Jato, em função da subjetividade e amplitude dos casos que podem configurar crime de abuso. Por outro lado, a nova legislação recebeu o apoio de quase a totalidade da Câmara, depois de ter passado pelo Senado, em 2017.

Durante a votação, parlamentares do PSL reclamaram especialmente do fato de policiais serem enquadrados no texto. Um caminho que pode ser costurado seria Bolsonaro vetar os trechos sobre esse tema. Isso, no entanto, é considerado insuficiente para os auxiliares do Planalto que se uniram no entorno da candidatura de Bolsonaro na esteira da Operação Lava-Jato. Eles argumentam que o presidente poderia perder apoio das redes e das ruas se optar por uma decisão que tente agradar os dois lados.

O TIRA-TEIMA DO NOVO

Bolsonaro afirmou que pretende um equilíbrio para uma legislação que puna abusos sem cercear os trabalhos das instituições.

— Existe abuso, somos seres humanos, mas a gente não pode cercear os trabalhos das instituições. A pessoa tem que ter responsabilidade quando faz algo que é dever teu, mas tem que fazer baseado na lei. Tem que fazer o que tem de ser feito de acordo com a lei e ponto final — afirmou o presidente.

Ele citou como exemplo de “abusos” os processos a que responde por apologia ao estupro por ter dito, em 2014, que a deputada Maria do Rosário (PT-RS) não merecia ser estuprada por ser “muito feia”. O presidente disse que se posicionará sobre o projeto após conversar com seus ministros e que, seguindo a orientação deles, tomará uma decisão “tranquila e serena”:

— Os ministros vão dar cada um a sua opinião, sugestão de sanção ou alguns vetos.

O ministro da Justiça, Sergio Moro, que fez oposição ao projeto quando atuava como juiz na Operação Lava-Jato, está analisando com assessores sugestões de artigos para serem vetados. Ele adotou tom ameno ao comentar o projeto:

— Ninguém é a favor de abusos, mas o projeto precisa ser bem analisado para verificar se não pode prejudicar a atuação regular de juízes, procuradores e policiais.

O partido Novo acionou o Supremo Tribunal Federal (STF) par atentar anulara votação de quarta-feira por um aspecto regimental. A aprovação do projeto foi de forma simbólica, sem o registro do voto de cada parlamentar. Entretanto, alguns parlamentares pediram ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a votação nominal. Maia indeferiu o pedido porque, segundo ele, não houve adesão do número mínimo de 31 deputados para mudar o procedimento. Se a votação fosse nominal, seria possível saber como votou cada deputado.

Agora, o Novo pede, em mandado de segurança, que a votação ocorra novamente, desta vez com o registro de cada parlamentar. Em vídeo postado nas redes sociais com imagens do momento da votação, o líder do Novo, Marcel van Hattem (RS), destaca que pelo menos 31 deputados concordaram com a votação nominal. A legenda quer que o Supremo confira o vídeo e garanta uma nova votação.

O PSL, partido de Bolsonaro, poderia ter pedido a votação nominal, mas por acordo feito com as demais legendas abriu mão. Ontem, diversos deputados do partido protestaram nas redes sociais contra a aprovação e pediram ao presidente que vete pontos do projeto.

Em nota, a Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público (Frentas), que reúne as principais associações do Judiciário e do MP, manifestou “indignação”. Afirma que a proposta “contém série de falhas e impropriedades que inibem a atuação do MP, do Poder Judiciário e das forças de segurança, prejudicando o desenvolvimento de investigações”.

As entidades dizem que o aperfeiçoamento das regras sobre abuso de autoridade é necessário, pois a lei que regula o tema até então é de 1965, mas que faltou debate. Uma das principais queixas é com o uso de “definições de diversos crimes de maneira vaga, aberta, subjetiva”, o que tornaria menos seguro o exercício da investigação.

“As entidades trabalharão para que excessos e impropriedades contidos no referido projeto de lei sejam vetados pelo presidente da República”, diz trecho da nota. (Colaborou João Paulo Saconi)

Perguntas e respostas

Como funcionará, na prática, a lei do abuso de autoridade?

Pode ser enquadrado qualquer agente público, servidor ou não, da União, estados ou municípios. A lei também alcança policiais e guardas municipais. São 30 casos específicos que podem ser enquadrados como abuso de autoridade, como decretação de prisão sem amparo legal e abertura de investigação sem indícios de crime.

Quem poderá acusar um juiz ou promotor?

Em qualquer caso, a autoridade que for processada só poderá ser denunciada pelo Ministério Público e julgada pelo Judiciário. Mesmo se o denunciado for um procurador, a acusação terá que ser apresentada por um colega do Ministério Público. O magistrado também será julgado por integrante da própria classe.

Juízes e procuradores poderão ser presos?

O agente público pode receber pena de até quatro anos de prisão, a depender do delito. Nestes casos, não há cumprimento de pena em regime fechado, na prisão. O condenado pode ser sentenciado, no máximo, a regime aberto. Também poderá ter a obrigação de indenizar o dano e até perder o cargo público.

Políticos podem ser punidos, mas que crime de abuso um parlamentar poderia cometer?

Há poucos delitos listados no texto que podem ser ligados à atividade parlamentar. Um pode ser levado em conta: a “carteirada”. A lei cita quem “se utiliza de cargo ou função pública ou invoca a condição de agente público para se eximir de obrigação legal ou para obter vantagem ou privilégio indevido”.

O projeto pode ser considerado um ataque à Lava-Jato e outras investigações?

Politicamente, o projeto tem sido tratado como uma reação dos políticos a supostos abusos das investigações. Promotores acusam uma retaliação, e dizem que terão o trabalho cerceado. Boa parte dos pontos já está prevista em outras legislações, e é preciso atestar como a lei será aplicada na prática.