Correio braziliense, n. 20525, 01/08/2019. Brasil, p. 8/9

 

Amazonas vira símbolo do atraso fluvial

Luiz Calcagno

01/08/2019

 

 

O esquecido caminho das águas » Dependente do transporte por rios, o maior estado do Brasil é um retrato do desdém de governos com as hidrovias ao longo das últimas décadas

Manaus — No Amazonas, o trajeto que se percorre com um litro de combustível é muito maior que em qualquer outra unidade da federação. Isso porque o estado, que reflete em seu superlativo as distâncias do Brasil, com 1,5 milhão de km², é detentor do maior rio navegável do país e milhares de outros afluentes. As mudanças de estação não interferem na navegabilidade do Rio Amazonas. E, segundo um levantamento da Câmara de Comércio Marítimo Canadá/Estados Unidos, com essa mesma unidade de medida de diesel, uma embarcação viaja 208km mais longe que um caminhão (leia quadro). Tanto é que, dos 101,5 milhões de toneladas de cargas em 2018, a região transportou mais da metade.

A quantidade de gramas de gás carbônico produzido por km percorrido com carga equivalente a uma tonelada também é favorável às embarcações. São 33,4g de CO2 contra um caminhão que, nas mesmas circunstâncias, produz até 164g. Apesar disso, a emissão de CO2 na região é alta, principalmente pelo desmatamento da floresta amazônica. Mesmo com características geográficas que, mais do que favorecem, obrigam o investimento em navegação, o modal da região está longe de ser um exemplo para o resto do país. Um dos motivos é a falta de portos.

E mais, além do transporte de cargas, existe outra modalidade de navegação indispensável para a região, que é o transporte de pessoas e produtos para municípios ribeirinhos. Parte das cidades amazonenses só pode ser acessada pelos rios. Quem faz esse transporte são os proprietários de barcos particulares, que têm os flutuantes como empresas e não contam com nenhum incentivo para melhorarem os serviços. O acesso a portos, mesmo na capital, Manaus, é precário.

Disputa por espaço

Na região conhecida como Manaus Moderna, no centro de manaus (AM), o acesso às embarcações é feito por balsas ancoradas à orla. Barcos de transporte disputam espaço ao redor de cada um dos flutuantes. Quiosques oferecem salgados, cerveja, refrigerante e música alta. Qualquer um entra, qualquer um sai. Inclusive crianças desacompanhadas, o que gera queixas por parte de proprietários, gerentes e capitães. Carregadores passam a todo momento com caixas, colchões, eletrodomésticos e sacas de víveres que disputarão espaço lado a lado no porão, e até no convés dos navios.

Gerente da embarcação Cidade Nhamundá IV, Dickson Jacaúna Rodrigues, 53 anos, afirma que é preciso ficar atento antes de partir. O risco é de ser parado por uma embarcação do Conselho Tutelar, por exemplo, atrasar a viagem e ainda ter que se explicar para a Justiça. “Uma das melhorias que precisamos muito é o do acesso, essa região é chamada de Manaus Moderna, mas não tem nada de moderno. É terrível, sem estrutura.O acesso é livre para quem quiser. É tudo muito malcuidado”, observa. “Precisamos desse investimento. O transporte fluvial é o mais utilizado pela população. Tirar isso seria como interditar todas as vias de uma cidade”, compara. “Fora isso, as viagens são boas. Com vento no rosto e proximidade com a natureza”, pondera o administrador.

Controle ruim

Empresária do ramo de embarcações, Natali Zanish, 42 anos, concorda. “Com o acesso que existe hoje, o controle é muito ruim. Consequentemente, a fiscalização, também. Os fiscais só aparecem para multar. Mas não fazem nenhum trabalho preventivo. O conselho tutelar, por exemplo, nunca está nos portos. Se passa uma criança e não vemos, nos param no meio do rio. É aquele transtorno. Mas ninguém ajuda com o controle”, explica.

Passageiros sentem na pele a falta de investimento. “A lei de oferta e procura é desvantajosa para quem vive aqui”, reclama a universitária Andel Civanie, 19 anos. Os pais dela, a autônoma Fátima Gomes da Silva, 48 anos, e Adrino Rebelo, 55 anos, moram em Tapauá, a três dias de viagem de Manaus. Fátima explica que paga R$ 150 por pessoa por trecho para ver a filha. Ela explica que teria que pagar o dobro para usar uma lancha rápida, mas não tem condições financeiras para isso. “A gente vem com mala, comida e a rede. As viagens são lentas. Como tudo depende dos barcos, acaba ficando mais caro”, lamenta.

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Sem apoio para o transporte de passageiros

01/08/2019

 

 

 

 

De acordo com o diretor da Agência Nacional de Transportes Aquaviários, Adalberto Tokarski, investimentos, tanto do município quanto do estado do Amazonas e do governo federal, são fundamentais para o transporte fluvial. Isso porque a região concentra 99% do transporte de pessoas por rios no Brasil. “No resto do país, é incipiente. Mas, na Amazônia, em 2018, só em linhas regulares, barcos carregaram 10 milhões de passageiros e mais de 4 milhões de toneladas de carga”, lembra Tokarski. “A maioria das embarcações é mista, e leva passageiros e produtos”, ressalta o executivo.

Diretor do Departamento de Navegação e Hidrovias do Ministério da Infraestrutura, Dino Antunes Dias Batista admite a carência de investimentos para o transporte fluvial de pessoas e cargas para cidades ribeirinhas do Amazonas. De acordo com o executivo, a Marinha Mercante tem um plano de financiamento para troca e manutenção de barcaças para atender produtoras e revendedoras de soja, combustíveis e minérios, por exemplo, mas não sabe como acessar os empresários e famílias donas de barcos da região.

“Quando a gente fala da grande navegação interior, são empresas que têm estrutura financeira para acessar recursos do fundo e fazer novas barcaças, está direcionado. Mas tem a parte social, com pequenas empresas que fazem esse trabalho, mesmo com inadequações nas embarcações. Como você faz para essas pequenas empresas, ou uma família que tem um barco, para acessar o fundo da Marinha Mercante? Uma empresa grande tem como dar garantia para o financiamento. Mas e as famílias? É um desafio. Não conseguimos uma proposta clara, mas é uma preocupação nossa”, afirma.

Dino destaca que, apesar da dificuldade de chegar a esses empresários, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) está com um projeto de construção de portos públicos de pequeno porte conhecidos como IP4 na região para atender essa parcela da população. Existem 44 distribuídas entre Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima. Os terminais são voltados, justamente, para o transporte de pessoas e cargas entre municípios do Norte do país.

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Em 10 anos, investimento cai 79% no país

 

 

Luiz Calcagno

01/08/2019

 

 

 

“No Brasil, costumam dizer que não temos hidrovia, mas rios navegáveis.” A afirmação é do diretor do Departamento de Navegação e Hidrovias do Ministério da Infraestrutura, Dino Antunes Dias Batista, e também é repetida por especialistas ouvidos pelo Correio. Significa dizer que, apesar de portos, eclusas e barcos transportando cargas de exportação e importação, além do transporte de pessoas que ocorre, principalmente, no Norte, não existe investimento em sistemas de operação, sinalização, comunicação, obras civis de dragagem ou derrocamento. Ações importantes para dar a fluidez e segurança para o corpo hídrico.

Talvez por isso, dos 42 mil km de cursos d’água aptos para o transporte de carga do país, apenas 45,2% sejam utilizados. Para se ter uma ideia, em 2009, o então Ministério dos Transportes investiu R$ 872,5 milhões no setor. No ano passado, o gasto foi de R$ 108,03 milhões, uma queda de cerca de 79%. Nos anos de 2011, 2012 e 2013, não há registro de gastos com hidrovias. Além disso, na média diária, o investimento em 2019 (do agora Ministério da Infraestrutura), foi de R$ 157,6 mil. Isto é, uma redução de 68% em relação a mesma média de 2018, que foi de R$ 493,2 mil.

A iniciativa privada é, no momento, o maior investidor na navegação de vias interiores. Como resultado, o modal avança com o passar dos anos, mas não acompanha os demais. Professor de logística da Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (Fatec), Marcos José Corrêa Bueno afirma que as poucas ações governamentais têm ocorrido, justamente, como consequência desse movimento. “O Brasil tem muito a explorar (no setor hidroviário). Hoje, quando a iniciativa privada vê uma estratégia, obriga o governo a agir. Mas uma hidrovia precisa ter estudo ambiental bem elaborado, pois o investimento é alto e teremos impacto (à natureza)”, diz.

Competência

O desenvolvimento das hidrovias pode tornar o Brasil mais competitivo internacionalmente, como lembra o professor do Departamento de Engenharia Civil e Ambiental da Universidade de Brasília (UnB), José Matsuo Shimoishi. “Para ter competência internacional com nossos produtos, para disputar o mercado globalizado, precisamos baratear o frete. Se você considerar a rodovia como base, o custo do frete da hidrovia é de 1/5 do valor”, compara. “Dos nossos rios, o único que é navegável sem nenhuma obra é o Amazonas. Muitas têm hidrelétrica sem eclusas, e construir as eclusas depois das barragens é caríssimo. Mas, a hidrovia polui menos que as ferrovias e é bem mais econômica também”, completa.

Outras medidas também voltadas ao transporte fluvial poderiam ajudar, lembra o especialista. “O Brasil também poderia incentivar mais a cabotagem, o transporte marítimo que atende o litoral do país. Isso também ajudaria. No lugar de pegar o arroz no Rio Grande do Sul e transportar de caminhão até Maranhão ou Ceará, pode ir pelo mar. Bem mais econômico”, acrescenta Shimoishi.

Caso a caso

Diretor do Departamento de Navegação e Hidrovias do Ministério da Infraestrutura, Dino Antunes Dias Batista destaca que a pasta atua, por meio do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), tanto na dragagem do rio madeira quanto na construção de portos públicos de pequeno porte, os IP4, em Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima. “Sabemos que existe um potencial de melhora desses dados e estamos trabalhando nisso para fazer políticas públicas com dados fidedignos”, afirma.

Questionado sobre onde seria o principal gargalo das hidrovias, Batista disse não ver a questão dessa forma. “Cada hidrovia tem seus problemas específicos. Por exemplo, Tapajós depende da pavimentação da BR-163, o (Rio) Madeira sofre com os garimpos clandestinos e os paliteiros, e o Tietê depende da finalização de obra” elencou. Sobre as soluções, disse que “o governo entra em cada caso de maneira diferente”. “Mantemos uma política de fomento, que vem do fundo da Marinha Mercante, para o operador privado, para se equipar e fazer a navegação interior. As empresas têm financiamento para construção de embarcações e estaleiros. Temos tido um sucesso grande no desenvolvimento da indústria naval, produzindo barcaças e empurradores de maneira competitiva”, garante.

O diretor também negou que o desenvolvimento das hidrovias no Brasil seja lento. “O ritmo da solução tem muito a ver com orçamento público e dificuldades fiscais. Mas, hoje, temos o departamento de navegação e hidrovias, que cuida especificamente desses temas. Passamos a ter uma proximidade muito grande com os próprios operadores da navegação interior. Temos discutido de perto a interferência do setor elétrico e problemas outros que acontecem nas hidrovias. Não identificamos nessas discussões um problema do tipo ‘não está sendo feito nada’. Existem pontos a serem melhorados e com o departamento, temos mais contato e facilidade para entender onde atuar”, defende.

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Rodovias poluem e matam mais

01/08/2019

 

 

 

O risco que a lentidão no investimento em hidrovias traz para o país é o de segurar o setor de cargas e logísticas preso no mesmo patamar. Dessa maneira, pequenos avanços serviriam apenas para a manutenção de hidrovias, sem desenvolvimento real. Quem alerta é o diretor da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Adalberto Tokarski, que destaca a necessidade de ampliação do fomento para uso dos rios mas, também, de todos os modais, para promover um avanço substancial de todo o setor.

“A primeira coisa que temos que ter é uma política de fomento elaborada para a utilização dos rios. Nosso principal modal no país, hoje, é o rodoviário, e a sociedade cobra melhorias e ampliação. Os demais, hidroviário e ferroviário, só determinados setores cobram (a melhoria)”, diz Tokarski. “Se não tivermos uma política que considere como estratégico o uso dos rios, esse crescimento será lento. Precisamos reforçar toda a estrutura de transporte do país, inclusive a rodoviária. Mas, se atacarmos tudo com o ritmo atual, não vamos sair do patamar atual”, alerta.

Custos

O diretor da Antaq destaca, ainda, o custo das rodovias federais. Além de poluir mais, ele afirma que 50% dos acidentes em rodovias federais têm um caminhão envolvido. Fato é que, segundo números do SUS de 2017, 34.336 pessoas morreram em decorrência de acidentes de trânsito no Brasil. No período, o sistema registrou 181.120 internações. Os gastos com saúde ficaram em cerca de R$ 252,7 milhões. “O transporte hidroviário é mais estratégico, com melhores custos de implantação e manutenção. Nas estradas, temos muitas mortes e vítimas que ficam sequeladas. Cerca de 50% dos acidentes têm caminhão envolvido. A manutenção é mais cara e o custo ambiental, mais alto”, compara.

“O transporte de uma tonelada de um determinado produto por um quilômetro em uma hidrovia emite de 33g de CO2. Em uma ferrovia, 48g. Na rodovia, 164g. O modal hidroviário tem várias vantagens. Para isso acontecer, não vejo outra solução, senão, o governo fomentar. Quem ganha é a sociedade. Essa mudança de modelo de transporte é benéfica, e os países mais desenvolvidos a utilizam cada vez mais”, acrescenta Tokarski. “Eu acho que essa reflexão está acontecendo na sociedade. Talvez, com um enfoque maior nas ferrovias, mas, muito aquém do que deveria ser. O governo está elaborando uma MP para fomentar a diminuição da burocracia e dos custos do setor”, destaca.

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Ambientalistas pedem vários modais

 

 

Cláudia Dianni

01/08/2019

 

 

 

Especialistas em meio ambiente concordam que o transporte de cargas por hidrovias gera menor impacto ambiental devido a menor emissão de gases poluentes. No entanto, eles chamam a atenção para efeitos ambientais dentro dos rios, que precisam ser observados, e para o fato de que, ao reduzir o custo dos produtores, devido à redução do frete, mais hidrovias podem estimular os produtores de grão, principalmente de soja, a avançar sobre áreas ainda não desmatadas. A contradição, avaliam, pode ser solucionada com o equilíbrio e a integração com os outros modais (ferrovia e rodovia) e, principalmente, com políticas ambientais que reduzam os impactos e limitem avanços sobre as florestas.

“Tirar a soja das rodovias reduz as emissões vinculadas ao transporte rodoviário e também o custo do frete. Com isso, a soja fica mais competitiva na bolsa de valores, pois a margem para aumentar o lucro do produtor é justamente a redução da despesa com frete, mas a consequência será o aumento da produção e o custo, obviamente, o desmatamento”, explica William Lelis, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Segundo ele, o valor do frete equivale a 28% do preço total do produto.

Na avaliação dos especialistas, o ideal é pensar em um sistema de transporte que integre todos os modais, de forma a usar cada um deles considerando sua eficiência e menor risco ambiental, a depender das características e sensibilidades de cada bioma por onde passam hidrovias, estradas ou ferrovias, pois todas as intervenções causam impacto, o que torna uma obra sustentável é a observância das características ambientais.

“Para reduzir o custo do frete de transporte e da emissão de gases poluentes, habilitar mais hidrovias para transporte de carga é uma opção, que também gera outras consequências ambientais, como o estímulo ao desmatamento, justamente devido às vantagens da hidrovia, entre outros. Esses problemas só podem ser equilibrados com política ambiental, coisa que não temos neste governo”, lamenta Lelis. “Não vemos nas emendas orçamentárias do Legislativo nada que se refira a habilitar hidrovias. A cultura brasileira está mais ligada a rodovias, onde as grandes empreiteiras que atuam aqui acumulam conhecimento”, diz.

Sensibilidade

O biólogo Alcides Faria, da ONG Ecologia e Ação (Ecoa), lembra que a hidrovia é o modal mais sensível aos efeitos das mudanças climáticas. Isso porque, para permitir que as embarcações naveguem, é preciso um nível mínimo de água nos rios, que diminui nas estiagens prolongadas, causando conflitos pelo uso da água entre a navegação e a produção de energia.

O transporte por rodovias, lembra, também fica prejudicado quando há paralisação de caminhoneiros. “Não dá para colocar todas as fichas em um único modal. É preciso diversificar”, afirma Faria, defensor das ferrovias. Para ele, a hidrovia que vale a pena é a chamada “hidrovia limpa”, ou seja, aquela que não muda o curso natural do rio e que não necessita de dragagens constantes para remover sedimentos acumulados.