Correio braziliense, n. 20525, 01/08/2019. Mundo, p. 16

 

Itaipu leva oposição a iniciar impeachment

Rodrigo Craveiro

01/08/2019

 

 

América do Sul » Acordo secreto firmado com o Brasil e considerado prejudicial aos interesses do Paraguai força renúncia de cinco autoridades e supostamente envolve o clã Bolsonaro. Parlamentares anunciam julgamento do presidente Mario Abdo Benítez e do vice

Em resposta a um acordo secreto sobre a hidrelétrica de Itaipu firmado entre os governos do Brasil e do Paraguai, em 24 de maio, os partidos da oposição no Congresso paraguaio iniciaram um processo de impeachment contra o presidente, Mario Abdo Benítez, e o vice, Hugo Velázquez. As tratativas com o Brasil, em maio passado, levaram à não inclusão de um item no memorando que possibilitaria a Assunção vender a energia elétrica de Itaipu no mercado brasileiro — uma manobra considerada altamente prejudicial para os interesses dos paraguaios. “Resolvemos dois pontos: em primeiro lugar, impulsionar o julgamento político contra o presidente e o vice-presidente, e a ação penal contra todos os envolvidos”, anunciou a líder do Partido Revolucionário Febrerista (PRF), Josefina Duarte, no início da noite de ontem. Efraín Alegre, presidente do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), explicou que a iniciativa tem relação com “traição à Pátria e mau desempenho de funções”. Hoje, a bancada opositora formalizará a denúncia na Justiça.

O escândalo forçou a renúncia de cinco autoridades (veja quadro) e envolveu no nome de Jair Bolsonaro. “Negócio com os Bolsonaro após ata secreta em Itaipu”, estampava, em sua manchete de ontem, o ABC Color, principal jornal de Assunção. Segundo o diário, o advogado José Rodríguez González, 27 anos, teria intermediado negócios entre a Ande — o equivalente à Eletrobras paraguaia — e a companhia brasileira Léros Comercializadora, a qual teria ligações com a família Bolsonaro. A mediação, ainda de acordo com o ABC Color, ocorreu sob as ordens de Hugo Velázquez. O Correio enviou várias mensagens para González e tentou contato por telefone, mas não obteve resposta.

Reação

Jair Bolsonaro não comentou a denúncia, manifestou solidariedade com Marito (apelido do presidente paraguaio), admitiu a possibilidade de o colega ser submetido a julgamento político sumário e aceita debater o cancelamento do acordo. “Nosso relacionamento com o Paraguai é excepcional, excelente. E estamos dispostos a fazer justiça nesta questão de Itaipu Binacional, que lá é importantíssimo para o Paraguai e muito importante para nós também”, declarou Bolsonaro a jornalistas. “Você sabe como é que funciona, lá é muito rápido o impeachment.” O porta-voz da Presidência da República, Otávio do Rêgo Barros, disse ontem à noite que o Brasil está aberto a discutir uma “eventual denúncia” do acordo, termo diplomático que significa “rescisão”.

Em entrevista ao Correio, Alfredo Boccia Paz —  escritor, médico e analista político do Ultima Hora — classificou como “extremamente grave o fato de um advogado de 27 anos, não vinculado ao governo, ter acesso a informação sensível e que vincularia o vice-presidente a um negócio de venda de energia aparentemente ligado ao clã Bolsonaro”. Ele explicou que a população paraguaia foi pega de surpresa com a renúncia do presidente e do gerente técnico da Ande. “Ambos denunciaram que, em maio, assinou-se um acordo secreto nocivo aos interesses do Paraguai, o qual obrigaria a um aumento da tarifa de energia elétrica. Isso provocou grande reação popular. Itaipu é um tema muito sensível em meu país. O Partido Liberal, principal legenda da oposição, exigiu a cabeça do chanceler (Luis Alberto Castiglioni), do diretor de Itaipu (José Alberto Alderete) e do embaixador paraguaio no Brasil (Hugo Saguier Caballero)”, comentou.

Com a divulgação de uma mensagem de WhatsApp de  José Rodríguez González, na qual o advogado orientava Alderete a retirar um dos itens do acordo secreto com o Brasil, o escândalo ganhou em intensidade. Boccia acredita  no êxito do julgamento político de Marito e de Velázquez. “A bancada do ex-presidente Horacio Cartes (Honor Colorado) acaba de anunciar que apoia o julgamento. Como eles costumavam votar alinhados ao Partido Colorado, isso se trata de um terremoto político”, avaliou, por volta das 21h40 de ontem. “O caso também põe em xeque a confiabilidade  sobre o modo como o Paraguai negocia com o Brasil. O pior é a impressão de que negócios particulares estão por trás de toda essa suposta causa nacional, a renegociação de Itaipu, um dos assuntos mais delicados da campanha do atual presidente”, acrescentou o analista.

O cientista político Jose Carlos Rodríguez, da Universidade Nacional de Assunção, crê que o suposto envolvimento do clã Bolsonaro seja “especulação”. De acordo com ele, a exclusão do item 6 do acordo fará com que o Paraguai siga fornecendo energia a preço muito reduzido para o Brasil. “A indústria brasileira comprará energia a preço muito baixo, sem permitir a contrapartida paraguaia.” Ontem, María Epifania González, secretária de Prevenção de Lavagem de Dinheiro ou Bens do Paraguaio (Seprelad) e mãe de González, também entregou o cargo.

PT exige acesso a pacto

Em nota assinada por sua presidente Gleisi Hoffmann, o Partido dos Trabalhadores (PT) afirmou que acompanha com “grande preocupação” os acontecimentosno Paraguai. “O partido entende que essa gigantesca hidrelétrica (...) foi construída pelos dois países irmãos para solidificar a amizade  (...), e não para servir de motivo torpe para conflitos que atrapalhem uma relação”. O PT “lamenta o fato de que o anunciado novo acordo tenha sido negociado de forma sigilosa”. Hoffmann apresentará requerimento de informação “para exigir o envio imediato de texto negociado na surdina”.

Frase

“Nosso relacionamento com o Paraguai é excepcional, excelente. E estamos dispostos a fazer justiça nesta questão de Itaipu Binacional, que lá é importantíssimo para o Paraguai e muito importante para nós também”

Jair Bolsonaro, presidente do Brasil

Os pivôs da crise

Quem são os principais personagens do escândalo envolvendo a hidrelétrica brasileira

Hugo Velázquez, vice-presidente

O nome dele aparece em uma mensagem de texto do advogado José Rodríguez González, a fim de respaldar uma suposta ordem de retirar o item 6 da ata diplomática firmada com o governo brasileiro. É acusado de mediar o acordo a favor da empresa brasileira Léros Comercializadora, que seria ligada à família do presidente Jair Bolsonaro. Velázquez pode enfrentar um julgamento no Congresso.

Luis Alberto Castiglioni, chanceler

O ministro das Relações Exteriores apresentou a demissão “após a decisão do Poder Executivo de solicitar a anulação da ata bilateral assinada em maio (com o Brasil), a respeito das condições de contratação de energia da hidrelétrica binacional de Itaipu, e devolver as negociações aos níveis técnicos”, afirma um comunicado oficial.

José Alberto Alderete, diretor da Itaipu no Paraguai

No cargo desde 16 de agosto de 2018, apresentou a própria demissão na última segunda-feira.

Hugo Saguier Caballero, embaixador do Paraguai em Brasília

O diplomata descartou “renúncia de soberania” do Paraguai em relação ao Brasil, com a assinatura.

María Epifania González (C) , secretária de Prevenção de Lavagem de Dinheiro ou Bens do Paraguai (Seprelad)

Renunciou após o envolvimento do filho, o advogado José Rodríguez González, em uma reunião com brasileiros para que fosse retirado do acordo o item que dizia que o Paraguai poderia comercializar livremente sua energia excedente.