Valor econômico, v. 20, n. 4752, 17/05/2019. Legislação & Tributos, p. E2

 

MP 881: amarras ou liberdade?

Luiz Rodrigues Wambier

17/05/2019

 

 

O artigo 170 da Constituição Federal dispõe que a ordem econômica da República Federativa do Brasil tem como alicerces a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. Esses elementos, aliás, constituem dois dos fundamentos da República. Na vida real um e outro são frequentemente desprezados.

O histórico e ultrapassado engessamento das regras trabalhistas, em parte flexibilizadas pela chamada de reforma trabalhista, criou estímulo à economia informal.

A liberdade de iniciativa foi solapada, por décadas, pela criação de verdadeiro nó burocrático. Empreender, no Brasil, é ato de coragem. Às vezes, em alguns setores, de verdadeira irresponsabilidade.

Ao longo do tempo houve iniciativas voltadas à redução dos entraves burocráticos à vida do cidadão e das empresas.

No governo Figueiredo, foi criado o Ministério da Desburocratização. Em 2018, foi editado o Decreto 9.094, numa tentativa de "domesticar" a sanha burocrática, que de tudo desconfia e a tudo dificulta. Está lá no art. 1º, I, que a relação entre os usuários dos serviços públicos e os organismos do governo federal deve se pautar, dentre outros, pelo princípio da boa-fé.

A Medida Provisória 881, de 30 de abril de 2019, batizada de Declaração de Direitos da Liberdade Econômica, segue o mesmo roteiro. Entre seus princípios dirigentes há o da presunção de boa-fé.

É interessante, para dizer o mínimo, que a boa-fé, que é regra matriz da ordem jurídica, deva ser afirmada e reafirmada na lei. Não temos boa convivência com esse princípio, especialmente nas relações do particular com o poder público.

Este é muito desconfiado quanto ao primeiro. E aí, como consequência disso, exige do particular um sem número de atestados e certidões, o que se menciona apenas como expressivo exemplo. É como se o Estado dissesse: "Você particular, merece a presunção de boa-fé, desde que a comprove mediante tais e tais documentos". Isso contraria lógica milenar pela qual a boa-fé se presume e a má-fé se comprova.

Há outros princípios, como o da presunção de liberdade no exercício de atividade econômica. Outro é o da excepcionalidade da intervenção do Estado, que só poderá ocorrer de modo subsidiário e em dose mínima.

A burocracia está encalacrada no serviço público. Há sempre um carimbo a ser aposto, uma certidão a ser requerida em determinada "repartição", e um atestado a ser exposto para demonstrar a boa-fé. Como há fraudes, o poder público, para se defender disso, incrementa as travas burocráticas. Pela quantidade de fraudes denunciadas por todos os cantos e em vários setores, parece que a barreira burocrática não é eficiente para coibi-las.

A receita é outra, adotada em países com grau invejável de civilização e desenvolvimento. E a MP 881 propõe à sociedade e ao próprio Estado a mudança de paradigma: estimular o crescimento, a geração de renda, o trabalho, o empreendedorismo, pelas asas da liberdade e pela confiança.

A MP trata de diversos temas, do direito civil ao empresarial e por aí afora. E privilegia a livre concorrência. A regra constante do artigo 4º, no capítulo das garantias de livre iniciativa, determina o dever da administração pública, ao exercer o poder de regulamentação, de evitar o abuso do poder regulatório, seja pela criação de reserva de mercado que beneficie grupos econômicos ou profissionais determinados, pela via da regulação. Também haverá abuso se houver a emissão de enunciados impeditivos à competição.

Já o artigo 14 amplia as hipóteses em que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional pode deixar de contestar, de oferecer contrarrazões ou de interpor recursos perante o Poder Judiciário, em respeito às decisões dos tribunais superiores ou da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência, "quando não houver viabilidade de reversão da tese firmada em sentido desfavorável à Fazenda Nacional". Os recursos repetitivos, por exemplo, terão novo apoio à higidez das teses firmadas quando de seus julgamentos.

Outra regra que merece atenção é que permite a realização de mutirões para a análise do enquadramento de processos ou de recursos às hipóteses em que se permite à Fazenda Nacional desistir, não recorrer, permitindo, ainda, à luz do artigo 190 do Código de Processo Civil, que sejam firmados negócios jurídicos processuais em matéria procedimental.

O tempo dirá se nessa queda de braço entre o ranço burocrático e a necessidade de novo sopro de ar fresco, que nos empurre a padrões civilizatórios mais adequados ao respeito à dignidade da pessoa humana, vencerão as amarras ou triunfará a liberdade.

A aposta está lançada. O Congresso Nacional é majoritariamente liberal? O Congresso Nacional quer gerar oportunidades de trabalho em razão de maior liberdade ao empreendedor? O tempo dirá. E ao menos a parcela da sociedade que quer respirar ares de crescimento de oportunidades deverá estar vigilante. Agora e na hora de votar novamente.