Correio braziliense, n. 20526, 02/08/2019. Mundo, p. 12

 

Acordo é anulado e presidente se salva

Rodrigo Craveiro

02/08/2019

 

 

Brasil-Paraguai » Embaixador brasileiro em Assunção e representante paraguaio invalidam ata diplomática sobre a hidrelétrica de Itaipu. Mario Abdo Benítez escapa de impeachment, após congressistas retirarem apoio ao juízo político, e promete não negociar ideais

A Ata Diplomática secreta sobre a usina hidrelétrica de Itaipu que detonou uma grave crise política em Assunção não existe mais. Brasil e Paraguai decidiram revogar o documento, classificado de “entreguista” pelos paraguaios. O acordo, assinado em 24 de maio, tinha retirado um item que permitira ao Paraguai vender a energia elétrica da usina de Itaipu no mercado brasileiro. Por meio do documento, o Paraguai aceitaria pagar mais pela energia. Especialistas consultados pela agência France-Presse estimam que os paraguaios amargariam um prejuízo de US$ 200 milhões. O cancelamento do memorando foi feito a pedido do presidente, Mario Abdo Benítez. Os contratantes “instruíram as instâncias técnicas no âmbito da Itaipu Binacional a retomarem as reuniões com o propósito de definir o cronograma de potência a ser contratada pela Eletrobras e pela Ande (equivalente paraguaia), no período 2019-2022”, afirma a nova Ata Bilateral de revogação. Em tese, tudo voltou à estaca zero.

Com a decisão, o Movimento Honor Colorado, bancada do ex-presidente Horacio Cartes no Congresso retirou o apoio à abertura de processo de impeachment contra Marito (apelido do presidente) e o vice, Hugo Velázquez. A manobra provocou uma reviravolta política no país. A Câmara dos Deputados tinha reunido os votos necessários para o afastamento de ambos, o que dependia apenas da mobilização do Senado. “O presidente brasileiro Jair Bolsonaro lançou um salva-vidas para Marito”, disse ao Correio o cientista político José Carlos Rodríguez, professor da Universidade Nacional de Assunção.

Pouco depois da zero hora de ontem e ante a iminência de impeachment, o presidente demonstrou tom desafiador no Twitter. “Aceito a luta! Por um Paraguai sem máfias!”, escreveu em seu perfil na rede social. A postura de confrontação de Marito foi trocada pela sensação de alívio em um discurso de pouco mais de 30 minutos considerado “insípido” e inócuo pelo ABC Color, o principal jornal de Assunção.

Não houve explicações sobre o acordo firmado na surdina com o Brasil. Apenas agradecimentos e promessas. “Quero agradecer ao povo paraguaio, que demonstrou seu interesse e protagonismo no interesse da defesa de seus ideais. Quero agradecer aos que criticaram o presidente da República e aos que não perderam a fé no presidente da República”, declarou. Marito avisou que não negociará seus princípios e ideiais. “Queremos que a gente sinta que tem um governo com coragem de defender os interesses do povo. A frase ‘caia quem cair’ será a mais dura para os próximos quatro anos. (…) Não vou acobertar nenhum só paraguaio que desonrar o povo.”

Após o pronunciamento oficial, Marito se dirigiu à sacada do Palácio de López e fez um breve discurso, desta vez voltado aos milhares de simpatizantes que se aglomeravam em frente ao prédio. “Peço desculpas, se é que errei. Nós temos errado e vamos seguir errando, seguramente, mas nunca o faremos de má-fé, muito menos negociaremos com o futuro da nação paraguaia”, afirmou. “Necessitamos de um Paraguai onde as instituições sejam respeitadas, um Paraguai onde se respeite a lei.”

Itamaraty

Pouco antes de o movimento Honor Colorado retirar o aval ao julgamento político, o Itamaraty divulgou comunicado no qual afirmava acompanhar com atenção” os acontecimentos no Paraguai. “Ao reiterar total respeito ao processo constitucional do Paraguai, o Brasil confia em que o processo seja conduzido sem quebra da ordem democrática, em respeito aos compromissos assumidos pelo Paraguai no âmbito da cláusula democrática do Mercosul—Protocolo de Ushuaia”, sustenta a nota, que destacou o “excelente nível de relacionamento” entre os presidentes Mario Abdo e Jair Bolsonaro, “com iniciativas de grande impacto positivo para o Paraguai nas áreas econômica, de integração física e de segurança pública”.

Segundo a chancelaria brasileira, “o desenvolvimento do Paraguai e sua participação ativa como valioso membro do Mercosul e da comunidade hemisférica são de enorme interesse para o Brasil, e o governo brasileiro está convencido de que o presidente Mario Abdo reúne todas as condições para continuar conduzindo esse projeto”.

O Correio entrou em contato com o advogado José Miguel Rodríguez González, 27 anos, o qual confessou à imprensa paraguaia que, por meio do WhatsApp, pediu a Pedro Ferreira, então presidente da Ande, a supressão do polêmico item do memorando. “Isso tomou a esfera legal. Por isso, eu me pus à disposição do Ministério Público. Devo brindar, primeiro, a informação à Promotoria. Depois, falar com a imprensa, por recomendação de meus representantes jurídicos”, disse. Ante a insistência da reportagem, ele comentou que não participou da assinatura da Ata Diplomática sobre Itaipu. “Apenas representei uma empresa brasileira com a intenção de comprar energia para a comercialização no país vizinho”, admitiu. Ao ser questionado se a empresa (Lerós Comercializadora) tem vínculos com a família Bolsonaro — uma especulação divulgada pela mídia paraguaia —, o advogado respondeu: “Não tenho conhecimento”.

Frase

“Este presidente não negociará seus princípios e seus ideais. (…) A frase ‘caia quem cair’ será a mais dura para os próximos quatro anos. Desde o presidente da República, o vice-presidente, e seja quem for, não vou acobertar nenhum só paraguaio que desonrar o povo.”

Mario Abdo Benítez, presidente do Paraguai

Eu acho...

“Jair Bolsonaro lançou um salva-vidas para Mario Abdo Benítez ao anular a Ata Bilateral, vista como prejudicial. Como resultado da pressão (atraso de pagamento) da usina hidrelétrica de Itaipu, algo nocivo para o Paraguai, e com o assentimento de Marito, qualificado como entreguista, a situação foi distensionada. Não há danos. Este é o discurso oficial: não há, não houve danos, nem segredos, nem compromissos. Foi uma negociação de rotina, onde cada um cuida do que é seu, sem prejudicar o outro.”

José Carlos Rodríguez, cientista político da Universidade Nacional de Assunção

O documento que revogou o documento polêmico

A Ata Bilateral, assinada ontem pelo embaixador do Brasil no Paraguai, Carlos Alberto Simas Magalhães, e por Federico González, embaixador do Ministério das Relações Exteriores do Paraguai ante Itaipu Binacional, sustenta que “a Alta Parte Contratante paraguaia comunicou sua decisão unilateral e soberana de deixar sem efeito a Ata Bilateral de 24 de maio de 2019”. “As Altas Partes Contratantes coincidiram em que a falta de acordo sobre o cronograma de potência a ser contratada de Itaipu afeta negativamente o faturamento dos serviços de eletricidade da entidade binacional e, em tal sentido, destacaram a importância de se encontrar uma solução para o problema a curto prazo”, afirma o documento. A assinatura foi acompanhada pelo chanceler paraguaio, Antonio Rivas Palacios.