Valor econômico, v.20, n.4753, 20/05/2019. Política, p. A8

 

Foco em reparação de danos trava acordos de leniência na Lava-Jato

André Guilherme Vieira 

20/05/2019

 

 

Mais de cinco anos depois de iniciada a Operação Lava-Jato, insegurança jurídica e risco de abertura de ações judiciais por órgãos de controle da administração pública ainda assombram empresas envolvidas em corrupção que assinaram acordo de leniência.

Hoje a empresa que buscar leniência percorrerá uma via crúcis que pode envolver até 10 entidades de governo nas esferas federal, estadual e municipal. Companhias que se submetem à auto acusação buscam evitar declarações de inidoneidade para contratar com o poder público e se proteger de ações judiciais que podem, no limite, pleitear a dissolução da pessoa jurídica investigada.

O Valor ouviu 21 especialistas, advogados, procuradores e técnicos de tribunais de contas. Alguns concordaram em falar reservadamente. A maioria converge para o mesmo diagnóstico: as regras atuais centram o foco na reparação de danos e deixam a colaboração das empresas em segundo plano.

Para a procuradora regional da República da 3ª Região, Samantha Dobrowolski, reparação não deve ser o foco principal da leniência. Membro da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, ela diz que o Estado não assimilou a legislação anticorrupção.

"A leniência é voltada a desbaratar crimes e obter provas ou caminho de provas. O ressarcimento é requisito para a pessoa jurídica firmar o acordo, é uma questão secundária e a lei ressalva que o ressarcimento integral é apurado à parte", destaca. Por se tratar de um instrumento de produção de provas, Samantha defende que o Ministério Público seja protagonista nas negociações.

"Todo acordo de leniência é meio de obtenção de prova. Secundariamente você otimiza o ressarcimento, a repatriação, quando o dinheiro está no exterior. O Ministério Público deve ter papel central nos acordos por sua experiência na visão do todo".

"A grande celeuma que hoje existe nos acordos feitos na base da lei anticorrupção é o valor da reparação de dano. A lei estabelece reparação integral", reforça o ex-ministro da CGU e hoje advogado, Valdir Simão. "Além disso, a apuração do damo ao erário tem um rito próprio, chamado tomada de contas especial, que compete ao tribunal de contas. O ideal seria separar a negociação da leniência do valor discutido para a reparação", sugere o ex-ministro da CGU.

"Deveríamos trabalhar na leniência com multa versus provas entregues, além da redução da multa a ser aplicada na perspectiva do sucesso da colaboração feita pela empresa. Depois haveria processo específico de tomada de contas para apurar a extensão do dano causado ao erário", propõe Simão.

Sebastião Tojal: "temos um ambiente de fragilidade regulatória e o tempo do processo legislativo é diferente"

O criminalista Rodrigo Dall'Acqua alerta que valores acertados em acordos firmados com o MPF tendem a ser questionados por outros órgãos. "O Ministério Público, quando fixa o valor do dano a ser reparado, o faz apenas com a competência para apontar o valor mínimo a ser pago. Por isso perde segurança jurídica quem busca apenas o Ministério Público para negociar", pondera o advogado.

Responsável por acordos no âmbito da Lava-Jato, o advogado Sebastião Tojal avalia ainda que falta uma lei para unificar procedimentos. "Temos um ambiente de fragilidade regulatória. E o tempo do processo legislativo é diferente do tempo das demandas sociais. Não vejo espaço na agenda legislativa para empenho na discussão e formatação de uma legislação que ordene essa situação", analisa.

Com a lei anticorrupção (12.846), editada em 2013, e a evolução da Lava-Jato a partir de 2014, acordos de leniência começaram a ocorrer com respaldo em lei específica para responsabilizar, civil e administrativamente, pessoas jurídicas por atos contra a administração pública.

A legislação, contudo, gerou efeito colateral ao estabelecer que "a autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública" poderá celebrar leniência. Diversos órgãos iniciaram uma disputa entre si e com o MPF pela primazia para acordo em casos de corrupção com dinheiro público.

Quando irregularidades se restringem à área administrativa, o processo de regularização é relativamente simples, por depender apenas de entendimento com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Vinculada ao Ministério da Justiça, a autarquia garante a concorrência e combate a formação de cartel.

O calvário começa quando a irregularidade se converte em ilícito decorrente da atuação de diretores ou sócios de empresa contratada pela administração pública.

Nessa hipótese, é preciso fazer acordo de leniência - casos das empreiteiras da Lava-Jato e do grupo J&F. Como eram contratados da União, assinaram leniência com o Ministério Público Federal (MPF). A Odebrecht teve ainda de fechar acordo com AGU, CGU e Cade.

Em casos de envolvimento em crimes com integrantes da administração pública federal, a empresa leniente estará sujeita a sanções de oito órgãos: Advocacia-Geral da União (AGU), Controladoria-Geral da União (CGU), Tribunal de Contas da União (TCU), Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Ministérios Públicos estaduais, procuradorias-gerais e controladorias estaduais - e ainda as procuradorias municipais. Receita e Fazendas estaduais evitam aderir a acordos dos quais não participaram, abrindo flanco de insegurança na área tributária.

A tradição tem sido as companhias buscarem acordos individualmente com cada órgão. No entanto, essas negociações permanecem em sigilo depois de validadas juridicamente. Por isso, outros entes públicos autorizados a negociar leniência enfrentam dificuldades para ter acesso aos termos.

Especialista em direito administrativo, o advogado Igor Tamasauskas acredita que é preciso tornar a publicidade das premissas de investigação dos acordos uma prática recorrente. "É fundamental que as autoridades entendam que um acordo celebrado foi o melhor entendimento a que se chegou. Para tanto, é necessário divulgar as premisssas da investigação que gerou esse acordo. É importante para quem está de fora entender qual foi a dinâmica daquela negociação".