O Estado de São Paulo, n. 46121, 26/01/2020. Política, p. A4

 

Expansão de milícias pelo País preocupa autoridades

Ricardo Brandt

26/01/2020

 

 

Eleições 2020. Levantamento do 'Estado' identifica grupos criminosos em 23 Estados e no DF; no Rio e em outras seis unidades da Federação há ligação de milicianos com políticos

A interferência de milícias no sistema político do Rio e o risco de expansão da atuação de grupos paramilitares para o resto do País preocupam autoridades públicas e estudiosos do assunto. O tema deve estar presente nas eleições de 2020, especialmente na disputa pela capital fluminense, onde as milícias atuam desde os anos 1980.

Hoje, há registros de milicianos no Distrito Federal e em 23 Estados, segundo levantamento feito pelo Estado em inquéritos, informações de serviços de inteligência policial, dados do governo e notícias publicadas pela imprensa. Nesses locais, os milicianos atuam, principalmente, como grupos de extermínio e de segurança privada forçada. Na maioria dos casos, eles ainda são considerados em estágio embrionário se comparados ao modelo carioca, já consolidado.

As milícias criadas fora do Rio ainda têm atuação mais restrita à venda de segurança privada com cobrança de taxa obrigatória dos moradores. Mas já há registros de casos em que milicianos passaram a oferecer, nas comunidades onde atuam, transporte, venda de gás, água, cestas básicas, imóveis, sinal de TV a cabo e internet – o que lhes permite controlar o território e, consequentemente, conquistar domínio político.

Em sete Estados (Ceará, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Rio, Rio Grande do Norte e Sergipe) já foram encontradas relações de milicianos com políticos. A Polícia Federal passou a monitorar a ação de grupos criminosos no processo eleitoral e identificou risco em 18 Estados, de acordo com mapa reservado obtido pela reportagem. A conta da PF inclui, além das milícias, facções criminosas. O foco é o financiamento ilegal de candidatos e partidos políticos, candidaturas de criminosos e de pessoas ligadas a eles.

“A milícia desequilibra o processo eleitoral como qualquer grupo armado que controla território, na medida em que eles decidem quem pode e quem não pode fazer campanha nesse lugar”, disse o sociólogo Ignácio Cano, coordenador do Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

Operações. No Maranhão, operação deflagrada em 2019 levou para a cadeia milicianos acusados de agir como grupo de extermínio e de atuar na exploração de jogos de azar e no tráfico de drogas e de armas. Um dos investigados foi candidato a vereador na cidade de Viana.

Em dezembro de 2019, a Polícia Civil do Piauí, com apoio do setor de inteligência da Polícia Militar, prendeu 13 pessoas – a maioria, policiais e ex-policiais que praticavam crimes como roubo de carga, extorsão, tráfico de drogas e comércio ilegal de armas. No Pará, a Polícia Civil e o Ministério Público têm registros de milícias que atuam como grupos de extermínio e passaram a controlar territórios, atuar com venda de gás, transporte e internet.

Embora ainda não haja uma ligação clara desses grupos com possíveis candidaturas eleitorais, as autoridades já estão em alerta. O delegado Gustavo Jung, do Grupo de Repressão ao Crime Organizado (Greco) da Polícia Civil do Piauí, afirmou que grupos locais podem começar a patrocinar políticos se não forem combatidos.

“A gente ainda não conseguiu ver um domínio territorial, como se tem no Rio. Mas é um embrião, porque começa assim”, disse o delegado. “Não duvido que, se não combatermos, daqui a alguns anos eles se organizem e passem a ocupar cadeiras políticas e a financiar campanhas eleitorais.”

Objetivo. Segundo o sociólogo José Cláudio Souza Alves, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que estuda milícias há três décadas, entrar para a política é um dos objetivos desses grupos. “Eles têm interesse em se projetar politicamente. Ao se fortalecerem, vão passar a controlar a atividade da política”, afirmou Alves, em tom de alerta sobre o “cenário muito favorável” para candidaturas de milicianos em 2020.

“Nas urnas, eles deixam de ser assassinos. Nas urnas, viram personalidades políticas, viram heróis. É a grande alquimia: (a urna) transforma assassinos, canalhas, monstros cruéis em heróis, em personalidades políticas, em benfeitores da comunidade”, disse Alves.

A presença de agentes do Estado, como ex-policiais, em seus quadros politiza as milícias, na avaliação do ex-ministro da Defesa e da Segurança Pública Raul Jungmann. Em 2018, quando os morros e favelas fluminenses estavam tomados por tropas federais, durante a intervenção decretada pelo então presidente Michel Temer, Jungmann teve uma dimensão do problema e da dificuldade de enfrentá-lo.

“Contrariamente ao tráfico de drogas, o miliciano tem formação e noção da política e da importância da política, o que, evidentemente, faz com que ele tenha maior propensão (a se infiltrar)”, afirmou o ex-ministro.

__________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Crime organizado também tenta interferir nas urnas

Ricardo Brandt

26/01/2020

 

 

Há registros da ação de facções em pelo menos cinco Estados; em São Paulo, políticos já foram associados ao PCC

Facções criminosas que controlam o crime e as prisões também buscam interferir e se infiltrar na política e no processo eleitoral, de acordo com estudiosos e autoridades.

No Rio, o irmão do traficante Marcinho VP, “Cidinho”, tentou se eleger deputado federal em 2010 pelo PRB, mas não conseguiu. Em 2016, no Rio Grande do Norte, polícia e Ministério Público gravaram, em uma interceptação telefônica, dois membros da facção Sindicato do Crime discutindo a necessidade de infiltrar um aliado na política local.

Há registros de ação de facções na política também em Mato Grosso do Sul, no Paraná e no Rio Grande do Sul, segundo levantamento feito pelo Estado.

Em São Paulo, o PCC, criado nos anos 1990 nos presídios, não mostra aspirações eleitorais como as milícias do Rio. Apesar de já ter sido associado a nomes de políticos, não há registros de membros da liderança do grupo se lançando como candidatos. O pesquisador e jornalista Bruno Paes Manso afirmou que a facção já controla um aparato do Estado, o sistema penitenciário. A partir daí, governa o mundo do crime, faz sua própria justiça, administra o mercado bilionário das drogas e estabelece suas regras.

O pesquisador está estudando as milícias no Rio e prepara um novo livro sobre o tema. Ele vê diferenças entre a forma de controle do PCC e dos grupos paramilitares e também distinções entre os discursos de legitimação dos atos.

Segundo ele, a violência policial pode ser propulsora de milícias nos moldes do Rio. “A violência policial acaba sendo a semente das milícias. Porque quando você tem uma tolerância com a polícia que mata, os caras começam a matar em defesa dos seus próprios negócios, seus próprios interesses. No Pará isso começou a acontecer e no Rio já acontece há um tempo.”