O Estado de São Paulo, n. 46121, 26/01/2020. Internacional, p. A14

 

Na Índia, Bolsonaro reivindica vaga no Conselho de Segurança da ONU

Paulo Beraldo

26/01/2020

 

 

Membro permanente. Em seu primeiro dia de agenda oficial em Nova Délhi, presidente brasileiro deposita flores no memorial do líder pacifista Mahatma Gandhi, depois se reúne com primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, e reforça antiga reivindicação do Itamaraty

Ao lado do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, Jair Bolsonaro reforçou ontem uma velha reivindicação da diplomacia brasileira: uma vaga de membro permanente no Conselho de Segurança da ONU – posto que a Índia também deseja. Em nova Délhi, no primeiro dia de sua agenda oficial, ele depositou flores no memorial de Mahatma Gandhi.

“São dois grandes países (Brasil e Índia). Estamos entre as dez maiores economias do mundo e juntos somos 1,5 bilhão de habitantes”, disse Bolsonaro, a respeito da reforma do Conselho de Segurança da ONU. “Acredito que seria bom para o mundo se Brasil e Índia estivessem nesse clube.”

Em seu discurso, Modi disse que Brasil e Índia têm objetivos convergentes. “Nossas visões, em vários desafios enfrentados pelo mundo de hoje, são muito parecidas, incluindo nossa parceria no Brics (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), a reforma do Conselho de Segurança da ONU e de outras organizações internacionais.”

A reivindicação do Brasil é histórica. Antes mesmo da fundação da ONU, ainda no período da Liga das Nações, o Brasil manobrava por um assento no Conselho Executivo (a versão do CS na época). Em 1926, após uma tentativa frustrada de vetar a entrada da Alemanha no órgão, o presidente brasileiro Artur Bernardes abandonou a organização.

Os planos foram retomados pelo presidente José Sarney, nos anos 80. O esforço do Itamaraty se intensificou durante as gestões dos dois chanceleres de Itamar Franco: Fernando Henrique Cardoso e Celso Amorim. No entanto, o clima de pósGuerra Fria, favorável a uma reforma da ONU, mudou com os atentados de 11 de setembro de 2001, nos EUA.

Os ataques recolocaram a segurança na agenda global e a ONU entrou em crise. Na esteira da guerra ao terror, declarada pelo presidente americano, George W. Bush, os EUA atacaram o Iraque sem a aprovação do Conselho de Segurança, em março de 2003.

Em agosto do mesmo ano, um atentado em Bagdá matou 22 pessoas, entre elas o alto comissário para os direitos humanos, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, um dos mais influentes funcionários da ONU e amigo pessoal do secretário-geral, Kofi Annan. “Chegou a hora de a ONU se renovar”, disse Annan. “Sob o risco de se tornar irrelevante.”

Durante os meses seguintes, o Secretariado da ONU recebeu mais de cem propostas para reformar a organização. Na ocasião, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se identificou com o tema e aproveitou a abertura dada por Annan para reforçar a reivindicação brasileira.

Em 2005, o Brasil formou o G-4, ao lado de Alemanha, Japão e Índia, para atuar em conjunto pela reforma do CS da ONU. A manobra, porém, não avançou em razão do contraataque diplomático de rivais regionais: México, Argentina, Itália, Espanha, Coreia do Sul e Paquistão criaram um grupo batizado de “Unidos pelo Consenso”, que barrou a reforma.

Hoje, o Conselho de Segurança da ONU tem 15 membros, sendo 5 permanentes e com poder de veto: EUA, Rússia, China, Reino Unido e França. Os outros dez integrantes são eleitos pela Assembleia- Geral para mandatos de dois anos.

Acordos. Ontem, além de uma maratona de reuniões com autoridades indianas, o presidente formalizou 15 acordos de cooperação com a Índia e obteve a promessa de US$ 50 bilhões em investimentos até 2022 – no ano passado, o intercâmbio comercial entre os dois países foi de apenas US$ 7,5 bilhões.

Em um aceno a Modi, Bolsonaro disse que pode rever a demanda brasileira contra o açúcar indiano na Organização Mundial do Comércio (OMC). “Ele (Modi) me disse que o açúcar comerciado para fora equivale a 2% do montante. Então, isso é pequeno. Pedi ao Ernesto Araújo a possibilidade de rever essa posição do Brasil” afirmou.

Hoje, Bolsonaro será o convidado de honra na festa nacional indiana, o Dia da República. Em Nova Délhi, ruas e avenidas foram fechadas e a segurança foi reforçada, com policiais armados com metralhadoras nas proximidades do palácio do governo. Drones, equipamentos de reconhecimento facial, detectores de metal e cerca de 10 mil seguranças já estão a postos para o evento.

Protestos. Nas TVs, rádios, jornais e revistas, os comentários sobre a presença do presidente brasileiro nem sempre foram positivos. Houve pequenos protestos contra Bolsonaro. Em Mumbai, maior cidade da Índia, alguns manifestantes foram às ruas com cartazes perguntando quem matou a vereadora Marielle Franco e a ativista Gauri Lankesh – defensora dos direitos das mulheres e crítica do nacionalismo hindu.

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'Eu sou um capitão, ele é um pacifista'

Paulo Beraldo

26/01/2020

 

 

Em seu primeiro dia de agenda oficial na Índia, Jair Bolsonaro visitou ontem o local onde estão as cinzas de Mahatma Gandhi. Na cerimônia, estavam presentes duas visões de mundo diferentes: o presidente brasileiro, conhecido pela retórica agressiva e belicosa, lançando flores para o pacifista indiano, líder da resistência contra o domínio britânico e “patriarca” do país.

“Olha, eu sou um capitão do Exército. Ele é um pacifista, tá certo? Mas, obviamente, a gente reconhece o seu passado sempre pregando a paz, a harmonia, a liberdade”, disse Bolsonaro.

A tradição de líderes estrangeiros oferecem flores a Gandhi é uma forma de demonstrar a importância do indiano. “Os valores da paz e do pacifismo influenciaram vários ativistas de direitos humanos e pensadores em todo o planeta. A filosofia de Gandhi é muito apolítica e ele é uma figura admirada por quase todas as pessoas”, disse o professor Umesh Mukhi, da FGV-SP. “A visita ao memorial é um sinal de honra e respeito aos valores e tradições da cultura indiana.”

Gandhi é também um símbolo de unidade da Índia, país de 1,3 bilhão de habitantes com distintas etnias, idiomas e religiões. Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, em 1996, e Luiz Inácio Lula da Silva, em 2004, também homenagearam o líder pacifista indiano.

Em sua viagem de quatro dias à Índia, Bolsonaro já foi a um templo hindu e visitou o mercado de Dilli Haat. Antes de voltar a Brasília, amanhã, ele tem programada uma visita ao Taj Mahal, um dos pontos turísticos mais conhecidos do país.