Correio braziliense, n. 20527, 03/08/2019. Brasil, p. 7

 

Enquanto o futuro não chega

Beatriz Roscoe

Leonardo Cavalcanti

03/08/2019

 

 

Há um país em busca de um futuro que nunca chega. As deficiências são graves e a carência de políticas públicas, tão assustadora que, por vezes, soluções práticas, de curto prazo e sem custos maiores, são esquecidas. É como se ações governamentais e da sociedade, a partir da própria conscientização, só pudessem ser implementadas mediante grandes esforços e orçamentos. O setor de transportes é um exemplo de que, sem grandes mágicas ou mesmo projetos de longo curso, é possível aumentar a eficiência energética, reduzir a emissão de poluentes e minimizar os engarrafamentos nos grandes centros urbanos.

Enquanto o futuro não chega com veículos que não poluem e transportes públicos de excelência, é possível adotar algumas medidas para melhorar a vida da população. A partir de entrevistas com usuários, acadêmicos, motoristas e empresários — e da leitura de teses e relatórios —, o Correio fez uma lista de 10 ações básicas para se trabalhar a partir de conceitos de eficiência energética.

Medidas com aplicação de curto e médio prazo não solucionam todos os problemas do setor de transporte, mas representam avanços e alternativas. Entre as principais ações citadas por especialistas estão o investimento no uso de biocombustíveis, a diversificação de modais de transportes, a redução do número de carros nas ruas, o maior incentivo ao uso do transporte coletivo, a direção mais consciente, a eletrificação das frotas, o aprimoramento da tecnologia veicular, o investimento no sistema de trânsito, a conscientização de motoristas e pedestres e a aposta no hidrogênio como combustível.

Os desafios e problemas a serem enfrentados na mobilidade urbana e no transporte de passageiros são grandes. O investimento necessário para saná-los é alto, mas com pequenos passos e medidas simples, é possível melhorar os impactos ambientais dos transportes e atender de forma mais eficiente a demanda por deslocamento.

________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Melhora do sistema público é um dos desafios

03/08/2019

 

 

 

 

A frota de veículos no Brasil cresce vertiginosamente, mas a infraestrutura não acompanha o crescimento do número de automóveis nas ruas. Além dos problemas sociais e de mobilidade que a sobrecarga do sistema viário causa, há inúmeros impactos ambientais, que envolvem a emissão de poluentes e gases de efeito estufa, o alto consumo de recursos não renováveis, a poluição do solo e a produção de resíduos sólidos.

De maio de 2009 a maio de 2019, a frota veicular aumentou 81,7% no Brasil. Em 2009, eram 56,32 milhões de veículos, segundo o Ministério da Infraestrutura. Atualmente, são 102,35 milhões. Em junho de 2016, os automóveis correspondiam a 54,20% do total de veículos do Brasil, segundo o Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). A frota era composta ainda de motocicletas (22,16%),  caminhonetes (7,52%) caminhonetas (3,41%), caminhões (2,72%) e ônibus (0,62%), entre outros.

Segundo David Duarte Lima, professor da UnB, doutor em segurança de trânsito e membro do Instituto Brasileiro para Segurança de Trânsito, a demanda por deslocamentos dobra a cada dois anos no Brasil. “O fato é que há um crescimento contínuo na demanda por mobilidade e há muita deficiência de meios coletivos de transporte. Com isso, as pessoas buscam a solução individual — o carro, a moto —, que, entretanto, produz o caos social e ambiental”, explica.

De acordo com Lima, a deficiência de soluções coletivas de transporte é decorrente de décadas de negligência e de falta de planejamento do Estado. “Como o Estado não tem proposta nem ação, a consequência é a procura por soluções individuais, que geram mais poluição, mais uso de combustíveis fósseis, mais ocupação do espaço e mais custo para as famílias”, observa.

Moradora de Planaltina, a estudante Fernanda Gonçalves, 20 anos, passa mais de três horas por dia no trânsito. Ela utiliza o ônibus como principal meio de locomoção para chegar ao trabalho e à faculdade, localizados no centro de Brasília. Fernanda diz que chega atrasada ao trabalho uma vez por semana, em média, por causa de engarrafamentos no trânsito. “É preciso parar com medidas paliativas e pensar, realmente, em uma reforma. É repensar a cidade como um todo, e o trânsito também”, afirma.

O tempo perdido nos deslocamentos prejudica a qualidade de vida, nota Fernanda. “A gente passa esse tempo todo no trânsito, muitas vezes em pé, porque os ônibus estão sempre cheios. Meu rendimento no dia a dia é muito afetado por isso.”

Além de males sociais, o excesso de carros nas ruas provoca impactos ambientais expressivos. Um estudo do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema) aponta que o modo rodoviário é predominante no transporte de passageiros e, em 2016, respondia por 90% das emissões de CO2. O transporte individual foi responsável por 77% dessas emissões.

De acordo com o relatório, o ritmo acelerado de crescimento do consumo de energia e de emissões de gases de efeito estufa (GEE) no transporte de passageiros pode ser explicado por dois fatores principais: o uso cada vez mais intensivo do transporte individual e a redução da participação relativa do etanol na grade de combustíveis.

O especialista em planejamento de mobilidade urbana e gestão ambiental Renato Boareto afirma que os desafios são muitos, mas nota que, em muitos casos, os problemas sociais e ambientais da mobilidade urbana encontram as mesmas soluções. “Reduzir congestionamentos, por exemplo, implicaria melhoras ambientais e sociais. E não se combate congestionamento aumentando vias, isso é o mesmo que combater obesidade com um cinto maior.”

Para Boareto, investir em transporte público deveria ser prioridade dos governos. “O transporte público é o único que pode ser universalizado. Além disso, é uma opção que ocupa menos espaço, reduz o consumo energético, diminui a emissão de poluentes e gases de efeito estufa, e ainda é pensado como estratégia de redução de vítimas de trânsito”, observa. “Não se pode desconsiderar a quantidade enorme de mortos e feridos em acidentes.”

Os impactos ambientais do transporte viário ainda se dão por vazamento de graxas e óleos;  produção de resíduos sólidos, como pneus e carcaças de carros, contaminação do solo (principalmente em decorrência de postos de gasolina desativados); piora na qualidade do ar; utilização de combustíveis fósseis e vários outros danos.

O estudo do Iema aponta que a reversão desse cenário de impactos ambientais impõe o desafio de avançar na adoção de um conjunto de medidas que, ao mesmo tempo em que reduzam as emissões de poluentes, também ampliem a acessibilidade das pessoas. A solução, segundo o relatório, está na melhoria tecnológica dos veículos e na coletivização dos transportes.

Renato Boareto acrescenta uma outra preocupação. “Hoje a tendência é a eletrificação do automóvel e dos ônibus. Mas devemos pensar também na fonte dessa energia, que não pode ser suja”, diz.  O desafio, observa, é olhar o sistema de transporte de forma universal. “As demandas da população, as relações ambientais e o custo econômico precisam caminhar juntos. É necessário que exista um princípio de planejamento urbano que promova acessibilidade, conectividade e sustentabilidade.” (BR e LC)