Correio braziliense, n. 20527, 03/08/2019. Mundo, p. 12

 

EUA vão acelerar a produção de mísseis

Rodrigo Craveiro

03/08/2019

 

 

O mundo está cada vez mais próximo de uma corrida nuclear. Após norte-americanos e russos confirmarem o rompimento com o Tratado de Armas Nucleares de Alcance Intermediário (INF, pela sigla em inglês), assinado no fim da Guerra Fria, em 1987, os Estados Unidos anunciaram que pretendem acelerar o desenvolvimento de novos mísseis terra-ar. O presidente Donald Trump advertiu que qualquer novo acordo para restringir a fabricação de mísseis nucleares terá de incluir a China, além da própria Rússia. “Realmente queremos incluir a China em algum momento”, afirmou o republicano. “Isto seria algo grandioso para o mundo”, avaliou. O secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), Jens Stoltenberg, prometeu que a resposta da aliança militar ocidental ao fracasso do INF será “comedida e responsável” e alertou que o sistema de mísseis SSC-8, de Moscou, capaz de transportar carga nuclear e de difícil detecção, violou o tratado. “Nenhum acordo internacional é eficiente se for respeitado por um único lado. A Rússia carrega a responsabilidade pelo fim do tratado”, disse Stoltenberg. Por sua vez, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Antonio Guterres, lamentou que o planeta tenha perdido “um freio indispensável na guerra nuclear”.

O secretário da Defesa dos EUA, Mark Esper, considerou a produção de mísseis uma reação natural a Moscou. “Agora que nos retiramos (do Tratado INF), o Departamento da Defesa continuará plenamente com o desenvolvimento destes mísseis convencionais para lançamento terra-ar, como resposta prudente às ações da Rússia”, avisou o chefe do Pentágono. Ele frisou que os EUA cumpriram “escrupulosamente” suas obrigações com o INF até a saída formal.

Em entrevista ao Correio, Steven Pifer — ex-embaixador dos EUA em Varsóvia, Londres e Moscou — assegurou que a proibição imposta pelo Tratado INF aos mísseis de cruzeiro e balísticos com alcance entre 500km e 5.500km foi “uma importante restrição à competição de armas nucleares entre EUA e Rússia”. “Agora, enfrentamos a perspectiva de uma competição de armas menos previsível, mais instável e menos segura. Washington e Moscou podem se lamentar pelo abandono do tratado”, disse o diplomata, que atuou como conselheiro da delegação americana nas negociações sobre as forças nucleares de alcance intermediário, em Genebra.

Start

Segundo ele, a contenção nuclear passa a depender de um único acordo, o Novo Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Start), de 2010, que expira em dois anos. “O pacto pode se estender por até cinco anos. A Rússia tem demonstrado interesse na extensão, enquanto o governo Trump não tem uma posição formal, e o conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, expressou dúvidas sobre a prorrogação”, explicou Pifer. O ex-embaixador acredita que a não prorrogação do Novo Start representaria um grande erro. “A ampliação restringiria as forças estratégicas russas até 2026, enquanto continuaria o fluxo de informação trocada pelos dois lados devido às provisões de verificação do tratado. Além disso, a prorrogação não afetaria os planos de modernização das forças estratégicas dos EUA, pois eles foram pensados para se adequarem aos limites do Novo Start.”

Pifer explicou que o Pentágono planeja o desenvolvimento de um míssil de cruzeiro lançado em solo com alcance de mil quilômetros e um um míssil balístico capaz de atingir alvos entre 3 mil e 4 mil quilômetros — destinado a responder à ameaça chinesa. “Ambos podem ser testados este ano. O impacto militar desses artefatos dependeria da prontidão dos aliados dos EUA em hospedá-los. Mísseis de alcance intermediário baseados nos Estados Unidos não causarão muita preocupação à Rússia ou à China.”

Diretora de política do Centro para Controle de Armas e Não Proliferação (em Washington), Alexandra Bell lembrou à reportagem que a Rússia já desenvolveu, testou e produziu um míssil de alcance intermediário, o 9M729. Agora, Washington buscaria fabricar um sistema de mísseis balísticos e de cruzeiro, terrestres, convencionais e móveis, com alcance entre 500km e 5.500km. “Se ambos os lados continuarem a desenvolver esses tipos de mísseis, poderíamos ver nova corrida armamentista.”

Bell destacou que o Tratado INF forneceu estabilidade ao continente europeu por mais de três décadas e ajudou a inaugurar o fim da Guerra Fria. “Sua morte torna o mundo menos seguro. Há preocupações de que Washington e Moscou não estenderão o novo Start. “Isso significa que não existiria controle sobre os sistemas nucleares estratégicos dos EUA e da Rússia pela primeira vez em quase 50 anos. Tal manobra ameaçaria a saúde do Tratado de Não Proliferação Nuclear, o mais importante do planeta”, disse a especialista.

Eu acho...

“Os Estados Unidos se retiraram do Tratado INF porque a Rússia violou o acordo, ao trabalhar com um míssil proibido. Infelizmente, o governo do republicano Donald Trump realmente não tentou trazer Moscou de volta à conformidade. Parece que tanto Moscou quanto Washington não tinham a vontade política para preservar o tratado. Como resultado, Rússia e Estados Unidos estão agora livres para dispor de mísseis de alcance intermediário, lançados do solo. É um grande golpe ao regime de controle de armas nucleares. No entanto, ainda não está claro sobre quais serão as consequências militares dessa retirada.”

Steven Pifer, ex-embaixador dos EUA em Varsóvia, Londres e Moscou. Atuou como conselheiro da delegação americana nas negociações sobre forças nucleares de alcance intermediário em Genebra

“Sem o Tratado INF, os Estados Unidos e a Rússia serão capazes de produzir um número ilimitado de mísseis de alcance intermediário. Tais mísseis poderiam ser configurados para carregar armas nucleares, como ocorreu durante a Guerra Fria. Nós sabemos que essas armas são altamente desestabilizadoras e é por isso que nos livramos delas em primeiro lugar. Se lembrarmos a corrida armamentista de alcance intermediário entre o fim da década de 1970 e o início dos anos 1980, veremos que não há garantia de que seremos espertos o bastante para criar outro tratado do tipo INF. Isso poderia significar um desastre.”

Alexandra Bell, diretora de política do Centro para Controle de Armas e Não Proliferação (em Washington)