Correio braziliense, n. 20528, 04/08/2019. Política, p. 2

 

Crimes virtuais mais do que dobram em um ano

Augusto Fernandes

04/08/2019

 

 

Segurança » Invasão de celulares de autoridades dos Três Poderes trazem à tona a fragilidade dos sistemas de comunicação atuais. Especialistas alertam que, para evitar a exposição de dados pessoais e informações sigilosas, usuário precisa mudar postura

Diariamente, são registrados pelo menos 366 crimes cibernéticos em todo o país. O levantamento mais recente, feito em 2018 pela associação SaferNet Brasil, em parceria com o Ministério Público Federal (MPF), contabilizou 133.732 queixas de delitos virtuais, como pornografia infantil, conteúdos de apologia e incitação à violência e crimes contra a vida e violência contra mulheres ou misoginia e outros. Em comparação ao ano anterior, a quantidade de ocorrências deu um salto de quase 110% — em 2017, a associação registrou 63.698 denúncias. Um fator que contribui para a ação criminosa, na visão de especialistas, é o descuido da população quanto à utilização de ferramentas que protejam os aparelhos celulares das invasões de hackers. Apesar de ser impossível estar 100% protegido, o mínimo de precaução pode reduzir as ameaças à privacidade de cada um.

“Utilizamos os celulares intensamente. Eles são dispositivos que contêm dados individualizados sobre o que cada um de nós pensa e como nos comportamos. Portanto, por eles serem um grande guardião de informações sobre nós mesmos, são necessários cuidados com relação à segurança deles. Vivemos em uma sociedade onde a vigilância está se incrementando”, diz o professor do Departamento de Ciências da Computação da Universidade de Brasília (UnB) Jorge Henrique Fernandes.

Segundo ele, além do crescimento da quantidade de crimes cibernéticos no último ano, os recentes ataques a celulares de autoridades da República, como o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, mostram que o sistema telefônico é bastante suscetível à interceptação de mensagens.

“O sistema telefônico não garante o sigilo das comunicações de forma perfeita. O investimento das empresas tem sido mais para fazer com que o usuário não perca uma ligação ou conexão do que no sentido de impedir que essa conversa seja interceptada. Essa fragilidade é um problema mundial”, afirma. Para Jorge Henrique, atitudes mais convencionais, como a utilização de senhas para controlar o acesso a aplicações e a cópia de documentos importantes em outro dispositivo, são o primeiro passo para se resguardar da ação de invasores.

“Os aparatos tecnológicos, de fato, foram feitos para nos espionar, e o principal problema desses equipamentos é não deixar claro qual tipo de informação ele coleta do usuário. Isso é agravado pela falta de educação das pessoas sobre informática. Elas não sabem a dimensão do poder do dispositivo que têm em mãos. Por isso, é recomendável que cada pessoa que usufrui da tecnologia reflita sobre até que ponto o que ela faz virtualmente tem importância e como vai se comportar na internet”, recomenda o professor.

Consciência

Professor e advogado especializado em direito digital e proteção de dados, Fabricio Mota reforça que a tecnologia não é infalível e que está sujeita a todo tipo de vulnerabilidade. “Temos de fazer o nosso dever de casa e adotar comportamentos seguros para evitar falhas. Não conseguimos controlar a tecnologia e saber de fato se é segura. Por isso, é necessário mudar a nossa postura com relação a ela para que a maior parte da culpa de uma eventual invasão não seja nossa”, analisa.

Estar consciente do risco, lembra Mota, é fundamental para que o usuário tenha noção de segurança. O conselho é válido especialmente para os brasileiros, visto que, no ano passado, o Brasil ficou entre os cinco países que mais gastam tempo usando celular, atrás de Indonésia, Tailândia, China e Coreia do Sul, segundo relatório da consultoria especializada em dados sobre aplicativos para dispositivos móveis App Annie.

Mota sugere que, ao utilizar computadores públicos, as pessoas evitem acessar redes sociais, e sempre navegar na internet em abas anônimas. Além disso, não repetir a mesma senha em vários dispositivos. Segundo ele, é recomendável um código para cada aplicação. Quanto mais difícil ele for, alternando entre caracteres especiais, números e letras maiúsculas e minúsculas, melhor.

“Senhas biométricas, que solicitem a impressão digital, uma confirmação por voz ou a leitura da íris do olho são preferíveis. O usuário tem de ser receoso. Sempre atualizar o antivírus dos seus aparelhos e usar uma rede privada virtual para filtrar as redes de Wi-Fi gratuitas. A partir do momento em que temos a percepção do risco, adotar providências para diminuir as ameaças será algo quase instintivo”, garante o especialista.

Sem preguiça

Ao incorporar esses hábitos no cotidiano, o usuário deixará de se incomodar com a quantidade de ferramentas de proteção, frisa o coordenador do curso de segurança da informação do Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb), Francisco Marcelo Marques. No entanto, ele reconhece que um dos grandes desafios às empresas de tecnologia é conseguir gerar consumo com os níveis de segurança necessários, sem interferir na comodidade de quem utiliza os aparelhos.

“O objetivo de qualquer aplicação é facilitar a ação do usuário. Portanto, o ser humano acaba tendo um comportamento mais relaxado. Além disso, muitos acham que nunca serão hackeados, pois julgam que as suas informações pessoais não são importantes. Aí é que está o perigo. É preciso desconfiar sempre”, alerta.

Marques destaca que a disponibilidade é inversamente proporcional à confidencialidade. Ou seja, quanto maior for a segurança, a tendência é que menos algum dado confidencial esteja disponível. “É fundamental ativar todos os mecanismos de proteção que a aplicação oferece, pois existem instabilidades que fogem do nosso controle. Maior segurança significa menor conforto. A preguiça é inimiga de precaução”, finaliza.

Tecnologia para o mal

Veja os principais crimes cibernéticos que ocorreram no Brasil em 2018

Violação    Incidência

Pornografia Infantil    60.002

Apologia e incitação a crimes contra a vida    27.716

Violência contra

mulheres/misoginia    16.717

Xenofobia (principalmente contra nordestinos)    9.705

Racismo    8.337

LGBTfobia    4.244

Neonazismo    4.244

Maus-tratos contra animais    1.142

Intolerância religiosa    1.084

Tráfico de pessoas    509

Fonte: SaferNet Brasil

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Privacidade por um fio

 

 

 

 

 

Renato Souza

04/08/2019

 

 

 

As autoridades brasileiras descobriram da pior maneira que uma guerra cibernética é travada silenciosamente todos os dias no mundo. Ocorrem bilhões de ataques virtuais contra empresas, pessoas, órgãos públicos e nações 24 horas por dia. Com o avanço da tecnologia, que permite uma comunicação rápida e eleva a atividade humana no meio virtual, surgem também grandes problemas e situações que exigem ações complexas para serem resolvidas. Uma série de invasões aos celulares de procuradores da Lava-Jato, do ministro da Justiça, Sérgio Moro, de jornalistas, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e parlamentares é apenas uma amostra dos estragos que podem ser causados por ações hostis com o uso da internet. Especialistas apontam que o Estado brasileiro colhe agora o resultado de décadas de atraso no investimento em segurança da informação e em tecnologias para coibir crimes cibernéticos.

Assim como o resto do mundo, o Brasil entrou na era em que a privacidade é reduzida à força, e exige mudança no comportamento de autoridades, executivos, famosos e profissionais que, em apenas um minuto, podem se tornar o alvo de investidas de grupos mal-intencionados. As mudanças apontadas para mitigar danos causados pela exposição, sequestro de dados e destruição de arquivos vão desde alterações nas rotinas pessoais até a restrição de assuntos que são tratados por meio de aplicativos de mensagens ou correio eletrônico. Além de pessoas, órgãos públicos inteiros, tribunais e serviços de comunicação, até mesmo o sistema energético, pode ser alvo de danos em decorrência da ação de crackers, como são chamados os criminosos virtuais.

Tendência

O livro Guerra Cibernética: A próxima ameaça à segurança e o que fazer a respeito aponta um cenário ainda distante da atual realidade brasileira, mas deixa o alerta sobre até onde pode chegar uma investida criminosa pelos sistemas de internet. Até mesmo governos podem ser autores de práticas reprováveis. No caso dos procuradores, pelos relatos que foram informados, até agora, à Polícia Federal e à imprensa, ocorreu um misto de despreocupação excessiva e ausência de instrução. Uma simples ferramenta, usada no próprio aplicativo Telegram, por onde supostamente ocorreram os vazamentos, impediria o acesso ao conteúdo privado. A verificação em duas etapas pode ser ativada nas configurações do aplicativo, e impede que o conteúdo seja acessado sem que ocorra acesso ao celular do usuário.

A tendência é de que esses ataques se repitam em todas as esferas do poder, e se tornem cada vez mais sofisticados, criando uma sociedade onde a privacidade é cada vez mais restrita. O consultor de segurança digital Leonardo Sant’Anna, especialista em cibercrime, afirma que os desafios de segurança digital avançam em um ritmo bem maior que a reação do governo brasileiro. “Esses tipos de ataques vão continuar. É preciso que se tenha a percepção de quem você é. Tem que fazer uma análise do nível de risco a ser submetido. Quanto maior o nível hierárquico e os problemas aos quais se está ligado, mais necessária é a busca por uma segurança de comunicação.”

Segundo o consultor, mesmo diante dos casos recentes de invasão, o setor público não tem se adaptado. O Estado precisa adquirir produtos que façam o bloqueio de ferramentas que são colocadas nos celulares. Eu imagino que, pelos menos, o ministro Sérgio Moro e os procuradores afetados, a partir de agora, não vão utilizar o celular da maneira como usavam antes. Não acessar uma rede de Wi-Fi que não conhecem. Não temos essa cultura de segurança no setor público. Nas empresas privadas, já temos”, completa.

Assim que os vazamentos dos procuradores da Lava-Jato vieram à tona, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal se preocuparam com o acesso não só aos seus celulares pessoais, como também aos sistemas da Corte. O temor é que ocorra o vazamento de processos em segredo de Justiça, inclusive alguns temas que são considerados de segurança nacional. Nos últimos anos, a Corte tem investido no ambiente virtual para acelerar o andamento das ações.

Julgamento virtual

Balanço divulgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) mostra que, até agora, 96% das ações já tramitam por meio eletrônico. Até mesmo julgamentos são realizados por meio do chamado plenário virtual, onde os integrantes da Corte tomam decisões públicas ou em segredo de Justiça. O presidente do STF, Dias Toffoli, destaca que o sistema tem sido reforçado, mas que uma invasão não pode ser descartada. “Qualquer sistema pode ser alvo de um ataque. Não estamos livres disso. Mas até o momento, não se registrou nenhuma investida contra o Tribunal”, diz Toffoli.

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Dodge acusa STF de abuso

04/08/2019

 

 

 

A investigação aberta em março pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, para apurar eventuais ofensas e a divulgação de fake news sobre ministros da Corte, foi considerada um “abuso de poder” pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que defendeu a suspensão do inquérito criminal. Segundo ela, Toffoli violou “os princípios do juiz natural e da impessoalidade” e criou um “verdadeiro tribunal de exceção”.

O posicionamento de Dodge é uma resposta à Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) que, em abril, impetrou um pedido no STF para que o inquérito em questão fosse interrompido. Entre os investigados pela Corte, está o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Operação Lava-Jato em Curitiba (PR).

No parecer, emitido na última quarta-feira e divulgado ontem, Dodge aponta pelo menos 20 irregularidades na investigação do STF. Segundo ela, “o ato coator é inconstitucional, pois a competência constitucional para requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial é do Ministério Público”.

“O inquérito instaurado representa clara investigação abusiva e sem respeito à legalidade, pois somente a própria Procuradoria-Geral da República tem a prerrogativa de investigar os associados da impetrante (ANPR)”, explicou a procuradora-geral da República, acrescentando que o documento “afronta a Constituição e o sistema acusatório”.

Além disso, Dodge pediu que “o STF se porte com autocontenção e racionalidade jurídica, sem se afastar dos valores que lhe cabe defender”. “Ainda que se depare com crimes de gravidade notória, como o são os dirigidos contra seus próprios membros, o STF, ainda que movido pelo fim de combatê-los, deve se manter adstrito ao regime democrático, ao devido processo legal, ao sistema acusatório e às liberdades de expressão e de imprensa. Na verdade, é justamente quando colocadas diante de situações de extrema gravidade que as instituições devem agir em estreita subserviência aos valores cuja proteção lhe justifica a razão de existir, sem recorrer a exceções”, escreveu.