Correio braziliense, n. 20528, 04/08/2019. Cidades, p. 22/23

 

A dor das Mariazinhas

Helena Mader

Adriana Bernardes

Deborah Fortuna

04/08/2019

 

 

Elas no alvo » Em entendimento recente, a Lei Maria da Penha tem sido aplicada em casos de violência doméstica contra crianças e adolescentes do sexo feminino. Das 14.985 ocorrências de 2018, 1.048 tinham meninas como vítimas. Na semana em que a norma completa 13 anos, série vai mostrar o impacto das agressões em garotas, adultas e senhoras

Os relatos são repletos de dor, revolta e mágoa. Descrevem a força de um soco, a potência de um chute e a angústia de uma tentativa de estrangulamento. A narrativa da covardia se repetiu 14.985 vezes no ano passado. Esse é o número de ocorrências de violência doméstica registradas nas delegacias do Distrito Federal em 2018. A cada 35 minutos, uma mulher desesperada expôs detalhes de seu martírio a uma autoridade policial. Milhares de outras vítimas apanharam em silêncio, sem denunciar a violência física e psicológica. Parte das ocorrências relacionadas à Lei Maria da Penha revela agressões ainda mais covardes — os crimes causaram o sofrimento de crianças e adolescentes. No ano passado, foram registrados 1.048 casos de violência doméstica em que as vítimas tinham menos de 18 anos, o que representa 7% do total.

Da primeira infância à terceira idade, a mulher sofre em casa o calvário de sua condição feminina. Na semana em que a Lei Maria da Penha completa 13 anos, o Correio publica a série de reportagens Elas no alvo para mostrar o impacto da violência doméstica na vida de meninas, de mulheres e de senhoras, além da repercussão dessa barbárie silenciosa em toda a sociedade. Cada injúria, xingamento, ameaça, coação, tapa, estupro ou feminicídio é um retrocesso civilizatório a ser combatido.

A Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, trouxe mecanismos de amparo e proteção para mulheres vítimas de agressões domésticas e representou um importante avanço no combate à violência de gênero. A legislação não faz restrições de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, religião, nem idade das vítimas, o que abre brechas para a aplicação de seus modernos dispositivos no caso de agressões contra crianças e adolescentes. Com isso, autoridades policiais e judiciárias têm enquadrado casos de maus-tratos e abusos sexuais contra crianças como ocorrências de Lei Maria da Penha.

Meninas que sofrem agressões dos companheiros nos primeiros relacionamentos, na descoberta do amor, também têm o amparo dos mecanismos da legislação. A adoção da lei para casos envolvendo crianças ainda é nova no Brasil. Em entrevista ao Correio, a farmacêutica Maria da Penha, que dá nome à lei, afirmou desconhecer esse novo tipo de aplicação, mas demonstrou satisfação ao saber do entendimento.

O Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Penal já tinham mecanismos para punir essas situações. Mas o enquadramento na Lei Maria da Penha é importante para proteger a vítima. O texto prevê a aplicação de medidas protetivas de urgência, como suspensão da posse ou porte de armas do agressor, afastamento do lar, proibição de aproximação da vítima, de seus familiares e de testemunhas, além da vedação a qualquer tipo de comunicação com a mulher e da proibição para frequentar determinados lugares.

Sem distinção

Na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) da Polícia Civil do Distrito Federal, a aplicação desse dispositivo legal é prioritária para proteger meninas vítimas de violência doméstica. “A Lei Maria da Penha é bem clara ao determinar que não deve haver distinção de idade. O texto fala em vítimas do sexo feminino, então, a lei tem incidência em qualquer caso de violação que ocorra em contexto doméstico e afetivo”, explica a delegada-chefe da unidade, Ana Cristina Melo Santiago. A partir da vivência de seis anos à frente da Delegacia da Mulher, ela conduz os casos de violência doméstica com a experiência de quem sabe indicar medidas de urgência para preservar a vida de vítimas.

A delegada explica que a Lei Maria da Penha não traz punições mais rígidas para o agressor. O foco do texto e de sua aplicação em casos de violência contra crianças e adolescentes é ampliar a proteção de quem sofreu agressões. “A Lei Maria da Penha trouxe um processamento mais rígido. Ela também leva a análise do caso a um juizado de violência doméstica, que é especializado e tem um olhar próprio sobre essa violência de gênero”, argumenta Ana Cristina. A interlocução entre a polícia e a Justiça também ganha celeridade. “A Lei Maria da Penha cria um ritual para o processamento do delito. Quando há requerimento de medidas protetivas, isso é encaminhado de forma eletrônica. Aqui no DF, entre 24 horas e 48 horas, é feita a tramitação entre a polícia e o Judiciário, com uma decisão”, lembra a delegada.

Em 2017, as delegacias do DF fizeram 14.806 ocorrências enquadradas na lei, das quais 8% tinham crianças e adolescentes como vítimas — o equivalente a 1.184 casos. A média diária de ocorrências teve poucas oscilações: de janeiro a março, houve 3.752 registros de violência doméstica, entre os quais, 262 eram contra meninas.

Febre e dor

 

 

A reportagem teve acesso ao andamento de casos de violência doméstica contra meninas relacionados à Lei Maria da Penha. Um dos episódios de agressão ocorreu em novembro de 2017, na Estrutural. A vítima, uma criança de 3 anos, foi estuprada pelo padrasto, que alegou estar possuído por entidades demoníacas. A avó paterna foi a primeira a perceber o sofrimento da garotinha, que ardia em febre e sentia dores fortes ao urinar. Levou a menina à DPCA para denunciar a suposta negligência da mãe da vítima. As suspeitas de abuso sexual foram automáticas e o exame realizado no Instituto de Medicina Legal (IML) confirmou lacerações graves na vagina da vítima.

Com o enquadramento do caso na Lei Maria da Penha, foram pedidas medidas emergenciais para proteger a criança, até a prisão do agressor, cuja defesa apresentou um incidente de insanidade mental. O laudo psiquiátrico confirmou os distúrbios do criminoso, que está na ala de tratamento psiquiátrico da Papuda.

Alguns casos de maus-tratos são enquadrados na Lei Maria da Penha quando o crime é marcado por uma situação de violência de gênero contra a menina. Coordenadora do Núcleo Judiciário da Mulher e titular da Vara de Violência Doméstica e Familiar do Riacho Fundo, a juíza Fabriziane Figueiredo Stellet Zapata exemplifica a situação com um caso que tramitou na vara: o pai agredia o filho e a filha, mas por razões diferentes. “O garoto era severamente castigado por não fazer o dever de casa ou por tirar nota baixa, por exemplo. Já a irmã sofria maus-tratos por não exercer tarefas consideradas femininas, como arrumar a casa, fazer o jantar ou cuidar dos irmãos mais novos. O levantamento psicossocial mostrou que ela era castigada por isso”, conta a magistrada. O caso do garoto foi para um juizado especial criminal e a agressão contra a menina tramitou em uma vara de violência contra a mulher, enquadrada na Lei Maria da Penha.

Amparo

As salas recém-inauguradas do Centro de Atendimento 18 de Maio, na 307 Sul, são o cenário de narrativas doloridas. O local recebe crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, e, a maioria, descreve cenas de terror ocorridas dentro de casa. Uma equipe de 10 pessoas, entre psicólogas, pedagogas e assistentes sociais, acolhe meninas e meninos abusados e garante o encaminhamento aos órgãos públicos competentes. Depois de passar por uma avaliação psicossocial, a vítima passa por um processo de escuta especializada, seguindo as diretrizes da Lei 13.431/2017. O texto estabelece o sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

“A escuta segue um protocolo científico, que tem como princípio não induzir a resposta, para que ela seja baseada na fala livre da criança e do adolescente. A gente não pergunta diretamente sobre o fato, a gente espera que a criança traga isso em algum momento”, explica a psicóloga Tatiana Moreira, que atua no Centro 18 de Maio. “Atendemos muitos casos em que o autor da violência foi o pai, o padrasto, o avô ou um cuidador, ou seja, uma pessoa que tinha vínculo afetivo com a vítima”, acrescenta.

Coordenadora da unidade, Adriana Faustino lembra que o Centro 18 de Maio recebe com frequência adolescentes vítimas de violência doméstica que precisam de medidas protetivas de urgência. Em alguns casos, as mães das crianças também precisam de amparo e o centro aciona a rede para garantir a proteção das mulheres e das crianças. “O centro se insere no sistema de garantias de direitos e tem o objetivo de fazer proteção social e provimento de cuidados. Somos a referência no DF para a realização de escuta especializada”, acrescenta Adriana. Após a conversa com as equipes da unidade, os casos são encaminhados a outros órgãos, como delegacia, Ministério Público e conselho tutelar.

No Distrito Federal, o Disque 100, serviço de denúncias de violações gerido pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, recebeu 2.977 relatos no ano passado. Desses, 1.650 eram relacionados a violações de direitos de crianças e adolescentes. Isso equivale a 55% do total. “Esse cenário demonstra que precisamos ter um olhar mais atento para as crianças que vivem em ambientes marcados pela violência doméstica. A maioria das violações ocorre dentro de casa e são casos difíceis de serem percebidos. Então, a comunidade, a escola, os vizinhos devem estar atentos. Qualquer pessoa pode procurar o conselho tutelar sempre que perceber uma situação suspeita”,  diz o secretário de Justiça e Cidadania, Gustavo Rocha.

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Entrevista - Maria da Penha Fernandes: "Como a senhora avalia a aplicação da Lei Maria da Penha em casos de crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica?"

04/08/2019

 

 

 

 

Eu não tinha conhecimento de que isso vinha ocorrendo. Mas fico muito feliz de saber que pessoas mais experientes da área jurídica tenham esse entendimento. Que as polícias e os tribunais de outros estados sigam esse modelo para ajudar a proteger crianças. Fico muito feliz e me sinto atendida por Deus. Ele me deu forças para ficar viva e seguir lutando.

As mulheres são vítimas de violência desde a primeira infância. A causa é cultural?

Quando o meu processo foi debatido, a OEA encaminhou um relatório ao Brasil solicitando a desconstrução do machismo por meio da educação. O governo precisa investir nos ensinos fundamental e médio para que haja uma sensibilização desde a infância. Para que a criança comece a perceber cedo que, se a mãe é agredida pelo pai, isso é crime. A visibilidade que a mídia dá ao tema também é muito importante. A partir dessa conscientização, a criança pode buscar ajuda, denunciar, procurar apoio na escola.

De que formas a violência doméstica atinge as crianças?

Quando eu era vítima de violência doméstica, recebi um tiro nas costas enquanto dormia. Pedi muito a Deus para que não deixasse minhas filhas órfãs de mãe. Se eu morresse, quem cuidaria delas? Pedi a Deus para não morrer antes de elas serem mulheres feitas, com discernimento para enfrentar as dificuldades. Agora, tenho a oportunidade e a felicidade de falar muito sobre a invisibilidade dessas vítimas, que são os órfãos (dos feminicídios). Em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco, fizemos duas pesquisas sobre as condições socioeconômicas da violência doméstica e familiar contra a mulher. Elas mostraram que cada mulher assassinada deixa, em média, duas crianças órfãs. Muitas mulheres grávidas também são assassinadas.

Quais foram os grandes legados da lei? E em que pontos ainda é preciso avançar?

São muitos os legados positivos, mas, infelizmente, as políticas públicas relacionadas à Lei Maria da Penha existem praticamente apenas nas grandes cidades e nas capitais. A maioria dos pequenos municípios não tem nem sequer um centro de referência para orientar as mulheres sobre seus direitos. Os gestores têm sido omissos.