O Estado de São Paulo, n. 46113, 18/01/2020. Espaço aberto, p. A2

 

Juiz de garantias, uma necessidade

Alberto Zacharias Toron

18/01/2020

 

 

Há uma crença absolutamente equivocada de que a governos autoritários correspondem, no campo penal, posturas legislativas necessariamente autoritárias. Na experiência brasileira não é assim. É paradoxal, mas ao tempo da ditadura militar experimentamos um avanço liberalizante com o fim da prisão preventiva obrigatória (1967) e o direito de recorrer em liberdade (1973). Idem, no que diz respeito à promulgação da nova Parte Geral do Código Penal (1985).

Na contramão, para citar alguns exemplos, em pleno período democrático vimos a promulgação da lei que instituiu a prisão temporária (1989), que nada mais é do que a flexibilização dos pressupostos autorizadores da prisão preventiva, e da Lei dos Crimes Hediondos, que, entre outras coisas, havia reintroduzido, ainda que por via oblíqua, a prisão preventiva obrigatória (1990).

Agora o governo Bolsonaro nos brinda com a promulgação do pacote anticrime e, nele, o juiz de garantias. Um tremendo avanço! A matéria foi aprovada por unanimidade na Câmara dos Deputados e no Senado passou sem retoques, a indicar a força da ideia em prol de garantir a imparcialidade do juiz que julga a causa. Aliás, como adverte Gustavo Badaró, “a palavra juiz não se compreende sem o qualificativo de imparcial” (Processo Penal, 3.ª edição., São Paulo: ed. Revista dos Tribunais, 2015, pág. 40).

O presidente Jair Bolsonaro merece um efusivo aplauso pela aprovação do instituto, que desde 2002 já estava previsto no projeto do Código de Processo Penal, fruto de denso trabalho elaborado por reconhecidos juristas. O tema, apesar de ser apresentado como uma novidade, nada mais é do que a bem-sucedida experiência iniciada em São Paulo há mais de 30 anos do Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo), que, obviamente, não é um mero gestor de inquéritos, e sim um complexo que atua no inquérito velando pela eficácia das investigações, mas também pelo respeito à legalidade e, portanto, impedindo abusos. Com isso se preserva a imparcialidade do juiz da causa, que não atuou na fase investigativa. Explicando melhor: o juiz que na fase do inquérito autoriza medidas como escutas telefônicas e ambientais, além de buscas e apreensões e prisões, acaba se tornando uma espécie de protagonista da própria investigação. Seu olhar e seu sentir ficam profundamente comprometidos com o que viu, ouviu e produziu. Esse juiz, quando sentenciar, não será imparcial. Ele está contaminado pela sua atuação na fase investigativa.

Essa separação entre o juiz que atua na fase investigatória e o que ouvirá as testemunhas e julgará é essencial para garantir a imparcialidade deste último. A Corte Europeia de Direitos Humanos de longa data tem rechaçado o modelo do juiz que atua tanto na fase de investigação como na do julgamento da causa (Badaró, obra citada, página 42). Este não é – e não pode ser – o imparcial para julgar. Mas não é somente na Europa que vigora esse entendimento.

Praticamente todos os países da América do Sul contam com o juiz de garantias. Fomos o último país a abolir a escravatura, não sejamos o último a mudar um sistema criminal judicial errado e sujeito a todo o tipo de distorções.

Causa estranheza que membros da própria magistratura e suas prestigiosas entidades representativas se insurjam contra o instituto do juiz de garantias. Ora argumentando com o ônus para o erário, ora com a dificuldade de se instaurar a nova sistemática em comarcas onde há apenas um juiz.

Os gastos são mais imaginários do que reais. Basta realocar os juízes nas cidades grandes. Já nas comarcas onde há apenas um juiz, pode-se trabalhar com os juízes da circunscrição, que engloba juízes de várias comarcas, e dividir funções. O mesmo vale para o âmbito da Justiça Federal, com as adaptações necessárias.

Portanto, cai por terra o argumento de que será necessário contratar mais juízes e haverá uma despesa extraordinária. Os tribunais julgarão os recursos oriundos do juiz de garantias em câmaras ou turmas, as mesmas existentes hoje. Aqui também não haverá qualquer mudança a implicar em novos gastos. Esse novo juiz, especializado no andamento de inquéritos, poderá conferir mais celeridade às investigações e nem de longe representa uma nova instância a retardar os julgamentos. Por fim, alguns juízes – e também comentaristas mal informados – chegaram a dizer que o juiz de garantias seria somente para réus ricos ou os da Lava Jato. Bobagem!

O sistema, há mais de 30 anos, funciona muito bem em São Paulo e para todos os investigados, pobres e ricos. Agora, em Manaus também há uma Central de Inquéritos com competência idêntica à do juiz de garantias. Outros Estados da Federação igualmente instituíram essa separação entre o juiz da fase de inquérito e o que julgará a causa. Garante-se não apenas a imparcialidade do último, mas a especialização do primeiro, tema tão caro à própria magistratura nos últimos anos, preocupada com a eficiência.

Diante de dificuldades estruturais, andou bem o ministro Dias Toffoli em prorrogar por 180 dias a implementação do juiz de garantias, embora, a meu juízo, nas capitais fosse possível desde já pôr esse juízo em prática, tal como já é feito nas cidades de São Paulo, Teresina e Manaus, para exemplificar. De outro lado, ultrapassados os 180 dias, a lei de caráter processual deve ser aplicada imediatamente, até mesmo aos fatos em andamento que ainda estejam na fase de inquérito.

Só mesmo uma ultrapassada e assustadora postura autoritária se pode colocar contra uma experiência que se provou bem em São Paulo e não tem nada para dar errado, a não ser a má vontade de alguns e, claro, o misoneísmo de outros.

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O Contrato Verde e Amarelo

Almir Pazzianotto Pinto

18/01/2020

 

 

A Medida Provisória (MP) n.º 905, de 11/11/2019, foi redigida com o objetivo de indicar os rumos do governo na política de combate ao desemprego. Se assim foi, nasce comprometida pela falta de clareza e objetividade, requisitos essenciais às normas de natureza jurídica.

Por avançar sobre matérias distintas, a MP 905 viola a Lei Complementar n.º 95, de 26/2/1998 que regulamenta o parágrafo único do artigo 59 da Constituição, referente ao processo legislativo. O artigo 7.º, I, determina que, excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto. Embrião de projetada legislação ordinária, não poderia cuidar de outros assuntos além do Contrato Verde Amarelo, como Previdência Social, estímulo ao microcrédito, gorjeta, reconhecimento de firma, trabalho aos domingos. Lembremo-nos da lição de Rui Barbosa: “Se a lei não for certa não poderá ser justa (...). Para ser certa, porém, cumpre que seja precisa, nítida, clara” (Réplica, vol. II, pág. 304).

Medida provisória é recurso utilizado pelo presidente da República para resolver “caso de relevância e urgência”. Não se presta a solucionar problemas crônicos como o desemprego, velho conhecido dos brasileiros, cujo enfrentamento exige providências de natureza econômica. A MP expira na hipótese de não ser convertida em lei no prazo de 60 dias, prorrogável uma única vez por igual período, contado da data da publicação, “suspendendo-se durante os períodos de recesso do Congresso Nacional”, conforme prescreve o artigo 62 da Constituição. A exiguidade de prazo exige texto simples, objetivo e claro, para lhe facilitar a tramitação nas duas Casas do Poder Legislativo.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, admite que a taxa de desemprego atinge 12% e sacrifica 12,6 milhões de pessoas. De acordo com S. Exa., 20,8%, ou 5,76 milhões, são desempregados com idade entre 18 e 29 anos. Oportunidades de trabalho decente surgem, mas fora do alcance de jovens semianalfabetos, pobres, brancos, pardos e negros, habitantes de distantes lugarejos ou de favelas, encaradas como questão de polícia.

Preocupa-se o ministro da Economia com a expansão da informalidade. Diz a exposição de motivos: “Pelos dados do IBGE verifica-se que a taxa apresenta tendência de crescimento, de forma que, no trimestre encerrado em agosto de 2019, 41,4% da população ocupada exercia seu trabalho de maneira informal”.

Informalidade também é mal antigo, incompreendido e não solucionado. É efeito colateral da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), cujo artigo 13 exige anotação da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) “para o exercício de qualquer emprego, inclusive de natureza rural, ainda que temporário, e para o exercício por conta própria de atividade profissional remunerada”. À anotação corresponde o registro feito em livros, fichas ou sistema eletrônico, conforme o artigo 41. Grandes empresas contratam com anotação da CTPS e registro. O mesmo não ocorre com pequenos e microempregadores, segmentos com altos índices de informalidade. Pequenos negócios celebram contrato de trabalho verbal, curto, tácito e informal. Desconheço pesquisa feita por instituição oficial ou privada destinada a entender as razões que levam o pequeno empresário a violar a CLT. Os motivos são óbvios. Na maioria das vezes não será por falta de temor à fiscalização ou de ser alvo de ação trabalhista. Assim age porque a legislação lhe impõe custos conflitantes com as incertezas do faturamento, em mercado periférico de baixo poder aquisitivo.

A opção pela legislação trabalhista não existe para o microempregador. Para sobreviver irá ignorá-la, embora ciente das consequências de eventual auto de infração fiscal. O microempregador, aliás, costuma ser o trabalhador demitido que não conseguiu se reempregar, a quem não se oferece outro caminho senão montar oficina de conserto de veículos sucateados, fazer reparos em redes elétricas ou de encanamento, montar boteco para vender café ou cachaça.

Diz o ministro Paulo Guedes: “O contrato de trabalho Verde e Amarelo tem como objetivo a criação de oportunidades para a população entre 18 e 29 anos que nunca teve vínculo formal. É, portanto, uma política focalizada que visa à geração de emprego, ao simplificar a contratação do trabalhador, reduzir os custos de contratação e dar maior flexibilidade ao contrato de trabalho.”

A MP 905 não simplifica, complica. Respeita os direitos do artigo 7.º da Constituição, recepciona parte mal definida da CLT, as Normas Regulamentadoras, e vantagens conquistadas em acordos e convenções coletivas “naquilo que não for contrário ao disposto” na MP. Como ficará após converter-se em lei não se sabe, diante de quase 2 mil emendas na Câmara dos Deputados.

A ordem econômica fundase na valorização do trabalho e na livre-iniciativa (Constituição, artigo 170). Assim como não há trabalho forçado, é impossível obrigar alguém a criar empregos. A insegurança político-jurídica responde pelo aumento da desocupação, do empobrecimento, das ondas de migrantes e de refugiados. Grandes vilões estão no desenvolvimento tecnológico, na informatização, na automação, fenômenos que desafiam a capacidade reativa da sociedade. A “proteção em face da automação, na forma da lei”, incluída pela Constituição entre os direitos dos trabalhadores, não passa de patacoada desmentida pelos fatos.

O desemprego aterroriza a humanidade. É o quinto cavaleiro do Apocalipse, flagelo temido por todos os governos. Está presente nas agitações sociais, como as que vemos na França, no Chile, em Hong Kong, e nas reviravoltas políticas presenciadas na Argentina e na Bolívia. Criar milhões de empregos é encargo do Ministério da Economia. Conseguirá com a MP 905? Duvido.