O Estado de São Paulo, n. 46113, 18/01/2020. Política, p. A10

 

Comunidade judaica cobrou demissão

Felipe Frazão

18/01/2020

 

 

Bolsonaro também foi pressionado por setores da sociedade que o apoiam, como evangélicos e olavistas, que criticaram Roberto Alvim

O presidente Jair Bolsonaro agiu para conter um desgaste maior com diferentes alas de sua base de apoio ao demitir o dramaturgo Roberto Alvim da Secretaria de Cultura, que parafraseou o ministro da propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels. Políticos governistas e opositores avaliaram que a principal pressão veio da comunidade judaica no Brasil, de quem o presidente se aproximou na campanha, mas também houve reações de repúdio de outros setores da sociedade – “olavistas”, evangélicos e movimentos de renovação política.

A Confederação Israelita do Brasil disse que considera “inaceitável o uso de discurso nazista pelo secretário da Cultura do governo Bolsonaro” e cobrou a demissão de Alvim. “Uma pessoa com esse pensamento não pode comandar a Cultura do nosso país e deve ser afastada do cargo imediatamente”, afirmou a entidade, em nota.

Próximo do presidente e de seus filhos, o embaixador de Israel no Brasil, Yossi Shelley, conversou com ele, mas preferiu a discrição e não fez comentários públicos. Ao Estado, a representação do governo israelense em Brasília endossou a demissão de Alvim. “A comunidade judaica e o Estado de Israel estão unidos no combate a todas as formas de antissemitismo. Por esta razão, a embaixada de Israel apoia a decisão do governo brasileiro de exonerar o secretário especial de Cultura, Roberto Alvim. O nazismo e qualquer uma de suas ideologias, personagens e ações não devem ser utilizados como exemplo em uma sociedade democrática sob nenhuma circunstância”, diz a nota divulgada pela embaixada.

A Confederação Israelita do Brasil (Conib) divulgou comunicado em que afirma que a fala “é um sinal assustador” da visão de cultura de Alvim. “Emular a visão do ministro da Propaganda nazista de Hitler, Joseph Goebbels, é um sinal assustador da sua visão de cultura, que deve ser combatida e contida.”

A representação diplomática da Alemanha no Brasil publicou postagem sem citar Alvim diretamente, afirmando que “o período do nacional-socialismo (de onde vem a abreviação “nazi”, do nazismo) é o capítulo mais sombrio da história alemã, que trouxe sofrimento infinito à humanidade”. Segundo o texto, “a Alemanha mantém sua responsabilidade. Opomonos a qualquer tentativa de banalizar ou mesmo glorificar a era do nacional-socialismo.”

Poderes. Antes inclinado a mantê-lo no cargo, segundo o próprio Alvim havia declarado, Bolsonaro mudou de ideia depois de manifestações dos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli. “Há de se repudiar com toda a veemência a inaceitável agressão que representa a postagem feita pelo secretário de Cultura”, disse Toffoli. O ministro do STF Gilmar Mendes escreveu, por sua vez, que “a riqueza da manifestação cultural repele o dirigismo autoritário nacionalista”.

Para o vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (SP), Bolsonaro contornou um estrago político maior. “O presidente agiu certo e de forma ágil”, afirmou Pereira, que é presidente do Republicanos e bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus. “A demissão do secretário resolveu o problema. Agora é atribuição do presidente encontrar outra pessoa de direita para a pasta, que é uma das mais infiltradas e aparelhadas pela esquerda”, disse o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), também integrante da bancada evangélica.

Membros da ala bolsonarista do PSL também afirmaram que Bolsonaro acertou. “Ele foi cirúrgico”, afirmou a deputada Carla Zambelli (PSL-SP). O expartido do presidente divulgou nota dizendo que era “inadmissível aceitar tal posicionamento partindo de um representante de um país democrático”.

Parlamentares da oposição fizeram representações à Procuradoria-Geral da República para apurar eventual crime de incitação ao nazismo por parte de Alvim, além da responsabilidade do Planalto sobre “perseguições” na cultura e na educação.

‘Limites’. O movimento de renovação política Agora! manifestou repúdio ao episódio. “Ao valer-se da estética nazista para dar seu recado nitidamente totalitário, com o selo oficial do governo federal, o sr. Roberto Alvim cruzou todos os limites da civilidade e do respeito ao Estado de direito, às instituições democráticas e ao povo.”

“Lamentável que nos dias de hoje alguém faça apologia ao nazismo. Uma vergonha e deplorável, sobretudo por vir de um representante público”, disse o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), em rede social.

O apresentador de TV Luciano Huck também criticou. “Sou brasileiro de família judia. 6 milhões de judeus morreram por causa do nazismo. Usar a cultura para fazer revisionismo histórico é perverso e violento. O vídeo do secretário Roberto Alvim é criminoso. Revela uma conduta autoritária inaceitável”, escreveu Huck em sua conta no Twitter. O apresentador tem sido apontado como possível candidato à Presidência em 2022. 

“É totalmente inadmissível termos representantes com esse tipo de pensamento.”

Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Senado

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Advogada afirma que descobriu 'ligação' de discurso 'por acaso'

Julia Lindner

18/01/2020

 

 

Primeira a citar o 'plágio' Manuela Lourenção diz que uma 'frase de efeito' usado por Alvim no vídeo chamou sua atenção

A associação do discurso do então secretário de Cultura, Roberto Alvim, com o nazismo foi descoberta quase que por acaso. A primeira pessoa a fazer a ligação foi a advogada Manuela Lourenção, de 36 anos, que mora em São Paulo. Ela assistiu ao vídeo em que Alvim anuncia o Prêmio Nacional das Artes e parafraseia o ministro da Propaganda de Adolf Hitler, Joseph Goebbels, com dois amigos, na noite de anteontem.

Manuela, especialista em negociações coletivas e litígios estratégicos, disse ao Estadão/Broadcast que não percebeu a referência imediatamente, mas que estranhou o cenário e a trilha sonora do vídeo. “Foi por acaso, não trabalho com isso. Era meio que uma brincadeira de teoria da conspiração”, afirmou. Na gravação, o agora ex-secretário de Cultura faz um discurso em tom nacionalista, ao som de uma ópera de Richard Wagner, compositor alemão admirado por Adolf Hitler.

Manuela relatou que decidiu transcrever um dos trechos do discurso de Alvim e pesquisar no Google. O resultado a surpreendeu ao mostrar um pronunciamento de Goebbels a diretores de teatro em 1933. A referência está no livro Joseph Goebbels: Uma biografia, de Peter Longerich.

O trecho que chamou a atenção da advogada foi: “Ou então não será nada”. “Estava vendo o vídeo com dois amigos e começamos a ver a estética, a cruz presente, brasão da Hungria... E aí um deles falou que a música é do (Richard) Wagner (compositor alemão). Pensei: ‘Deve ter mais referências (ao nazismo), vamos ver’”, disse Manuela.

“A frase “Ou então não será nada” me chamou muito a atenção, eu encafifei com ela porque parecia uma frase de efeito, e aí surgiu a biografia do Goebbels”, afirmou ela.

Após a “descoberta”, por volta das 23h, Manuela foi ao Twitter e escreveu que a citação de Alvim era um “plágio” do ministro da Alemanha nazista. A música de Wagner, de acordo com Manuela, foi identificada por um amigo.

Repercussão. Após a postagem, o assunto começou a repercutir – a informação foi compartilhada pelo site Jornalistas Livres cerca de duas horas depois da publicação de Manuela, no início da madrugada de ontem. Pela manhã, o termo “Goebbels” já era o tema mais comentado da rede social.

“Para uma pessoa fazer uma associação tão clara (com o nazismo), achei que tivesse algum respaldo do governo”, disse a advogada, que afirmou não imaginar que o secretário seria demitido.

Após Alvim dizer que houve “coincidência retórica” entre a sua fala e a de Goebbels, a advogada disse ter achado outra semelhança entre os discursos dos dois. No vídeo, o então secretário afirma que “a cultura não pode ficar alheia às imensas transformações intelectuais e políticas que estamos vivendo”. Goebbels, por sua vez, declarou que “tampouco o cinema pode ficar alheio às imensas transformações intelectuais e políticas”.

REPERCUSSÃO

Der Spiegel

A revista alemã disse que o discurso de Alvim foi “chocante” na tentativa de promover “religião e nacionalismo na arte”. Classificou ainda o governo Bolsonaro como “populista de direita”.

The New York Times

O jornal americano mencionou a demissão de Roberto Alvim por “evocar propaganda nazista” em vídeo que tocava ao fundo “uma ópera que Adolf Hitler considerava sua preferida”.

El País

O jornal espanhol destacou a justificativa de Jair Bolsonaro para exonerar o secretário de Cultura, como o “repúdio às ideologias totalitárias”.

The Guardian

Jornal britânico diz que secretário deixou cargo “após parafrasear o nazista Goebbels” e que suas declarações “foram assustadoramente remanescentes do chefe de propaganda de Hitler”.