O Estado de São Paulo, n. 46117, 22/01/2020. Política, p. A4

 

Procurador acusa Glenn de associação criminosa

Patrik Camporez

Pepita Ortega

Rafael Moraes Moura

22/01/2020

 

 

Caso dos hackers. Jornalista do The Intercept Brasil é acusado de orientar e participar do esquema de invasão de celulares e roubo de mensagens de autoridades como Moro e Dallagnol

O Ministério Público Federal em Brasília acusou ontem o jornalista Glenn Greenwald de participar do esquema de invasão de celulares e roubo de mensagens de autoridades públicas, como o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, e o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Greenwald foi denunciado pelos crimes de associação criminosa e interceptação telefônica sem autorização judicial. Outras seis pessoas alvo de investigação na Operação Spoofing foram acusadas formalmente pelos mesmos crimes e por lavagem de dinheiro.

A Justiça Federal vai analisar se aceita ou não a denúncia. Caso ela seja acolhida, os acusados se tornam réus e vão responder pelos crimes em ação penal.

Greenwald não foi objeto da investigação da Polícia Federal. Em agosto do ano passado, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar em que proibia que o jornalista fosse investigado e responsabilizado pelas autoridades públicas e órgãos de apuração administrativa ou criminal (como a PF) pela “recepção, obtenção ou transmissão” de informações publicadas na imprensa. Gilmar alegou “sigilo constitucional da fonte” para a decisão.

O jornalista é fundador do site The Intercept Brasil, que iniciou a publicação de uma série de reportagens sobre mensagens trocadas entre Moro – quando juiz da 13.ª Vara Federal em Curitiba –, Dallagnol e outras autoridades da Lava Jato.

Na denúncia, o procurador Wellington Divino Marques de Oliveira afirma que a decisão de Gilmar não foi descumprida.

Para sustentar sua acusação contra Greenwald, o procurador cita um diálogo entre o jornalista e Luiz Molição, acusado de ser um dos hackers que invadiram os celulares das autoridades. A conversa teria ocorrido em junho de 2019, após a publicação de reportagens sobre a invasão do celular de Moro.

Uma cópia da gravação foi encontrada no computador apreendido na casa de outro acusado de participação nos crimes – Walter Delgatti Neto, o “Vermelho”. Na conversa telefônica, Molição pergunta a Greenwald se ele deveria fazer um “download” de todas as conversas a que teve acesso. Greenwald afirma que já tem uma cópia de tudo o que pretendia citar nas reportagens do The Intercept (mais informações nesta página). Para o procurador, a conversa mostra que o jornalista tomou conhecimento de que o grupo de hackers continuava tendo acesso à troca de mensagens.

“O jornalista Glenn Greenwald, de forma livre, consciente e voluntária, auxiliou, incentivou e orientou, de maneira direta, o grupo criminoso durante a prática delitiva, agindo como garantidor do grupo, obtendo vantagem financeira com a conduta aqui descrita”, diz trecho da denúncia.

O delegado Luiz Flávio Zampronha, responsável pelo inquérito policial do caso, havia tido uma interpretação diferente ao analisar o mesmo diálogo. Para ele, a conversa demonstrava que Greenwald adotou uma “postura cuidadosa e distante” em relação às invasões de celulares. No relatório final da PF que encaminhou em dezembro passado à 10.ª Vara Federal em Brasília, o delegado afirma que Greenwald disse a Molição que, para não ser acusado de participação na invasão, ele “teria que provar que somente falou com a ‘fonte’ das informações após a conclusão da ação criminosa”.

Greenwald negou que tenha cometido crime e classificou a denúncia do MPF como um ataque à liberdade de imprensa (mais informações nesta página).

O procurador tratou da questão na denúncia, afirmando que “diferente é a situação em que o ‘jornalista’ recebe material ilícito enquanto a situação delituosa ocorre e, tendo ciência de que a conduta criminosa ainda persiste, mantém contato com os agentes infratores e ainda garante que os criminosos serão por ele protegidos, indicando ações para dificultar as investigações e reduzir a possibilidade de responsabilização penal”.

Repercussão. A acusação formal contra Greenwald gerou repercussão na política e no mundo jurídico. O Estado apurou que Gilmar considerou que a denúncia desrespeita sua decisão.

Integrantes da cúpula da Procuradoria-Geral da República ouvidos pelo Estadão/Broadcast avaliaram que não havia impedimento legal para a acusação formal. Conforme um representante da chefia da PGR, a legislação permite que alguém seja denunciado sem que tenha sido oficialmente investigado, desde que haja elementos suficientes para embasar a acusação.

O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), classificou a denúncia como uma “ameaça à liberdade de imprensa”. “Jornalismo não é crime”, escreveu. O senador Álvaro Dias (Podemos-PR) afirmou que “Glenn Greenwald e seus comparsas” têm grandes chances ir à prisão. “Tudo isso com concurso de pessoas e concurso material, várias pessoas praticando vários crimes.”

DIÁLOGOS

Luiz Molição: Assim que você publicar os artigos, todo mundo vai excluir as conversas, todo mudo vai excluir o Telegram, a gente queria saber se você, o que você recomenda fazer.

Greenwald: Eles vão tentar acusar que “nós formam” parte dessa tentativa de hackear. Mantendo as conversas, são as provas que você só falou com a gente depois que você tinha tudo.

Greenwald: Nós não podemos fazer nada que pode criar um risco que eles podem descobrir “o identidade” de nossa fonte. Como eu disse, não podemos apagar todas as conversas porque precisamos manter, mas vamos ter uma cópia num lugar muito seguro... se precisarmos. Pra vocês, nós já salvamos todos, já recebemos todos. Eu acho que não tem nenhum propósito, nenhum motivo para vocês manter nada, entendeu?

Molição: Sim.

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Jornalista vê 'retaliação' e 'ataque à imprensa livre'

Gregory Prudêncio 

22/01/2020

 

 

Em um vídeo publicado nas redes sociais, o jornalista Glenn Greenwald disse que a denúncia oferecida pelo Ministério Público em Brasília ontem é uma retaliação do governo federal contra ele, por causa das reportagens da série “Vaza Jato”, publicadas pelo site The Intercept Brasil. Segundo ele, a acusação formal é um ataque à liberdade de imprensa, à Polícia Federal e ao Supremo Tribunal Federal.

“A própria PF, sob o comando do ministro Moro (Sérgio Moro, ministro da Justiça), fez uma investigação completa e concluiu com clareza que eu não cometi nenhum crime, muito pelo contrário”, afirmou Greenwald. “Sempre fiz meu trabalho como jornalista com muita cautela, responsabilidade e profissionalismo.”

O advogado Rafael Borges, que defende Greenwald, disse que o Ministério Público Federal desrespeitou uma medida cautelar do ministro Gilmar Mendes, do Supremo, que determinou que órgãos de controle “abstenham-se de praticar atos que visem à responsabilização” do jornalista.

A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) classificou o caso como violação à liberdade de imprensa. A associação disse que a PF não encontrou indícios de que o jornalista se envolveu nos crimes. “Em nenhum momento Greenwald buscou ‘subverter a ideia de proteção à fonte jornalística em uma imunidade para orientação de criminosos’, como afirma o procurador.”

Para a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a acusação formal foi “absurda”. “A denúncia, inteiramente inepta, representa um atentado à Constituição brasileira, um desrespeito ao STF e à PF.”

Já o advogado Ariovaldo Moreira, que defende outros três denunciados pelo Ministério Público, disse que a denúncia apresentada “confirma que as acusações são de cunho político, desprovidas de qualquer embasamento técnico”.