O globo, n.31409, 05/08/2019. País, p. 05

 

'Que mania de que parente de político não presta'

Bruno Góes 

05/08/2019

 

 

Culto. Bolsonaro abraça o pastor César Augusto, da Igreja Fonte da Vida, aonde o presidente foi na manhã de ontem

O presidente Jair Bolsonaro defendeu em entrevista coletiva ontem a nomeação de parentes para cargos públicos e reiterou sua intenção de indicar seu filho Eduardo Bolsonaro, deputado federal, para o cargo de embaixador brasileiro em Washington, nos Estados Unidos. Reportagem publicada na edição de ontem do GLOBO mostrou que ele e seus três filhos políticos empregaram em seus gabinetes parlamentares 102 pessoas com laços de parentesco entre si ou com a própria família Bolsonaro, de 1991 até 2018.

—Que mania que todo parente de político não presta. Eu tenho um filho que está para ir para os Estados Unidos e foi elogiado pelo (Donald) Trump. Vocês massacraram meu filho, a imprensa massacrou, (chamou de) fritador de hambúrguer — disse Bolsonaro.

O presidente inicialmente rebateu a reportagem dizendo nem ter 102 parentes, mas quando os repórteres o alertaram de que a matéria trata também de familiares de funcionários, o presidente disse ter nomeado parentes seus apenas antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) editar, em 2008, a súmula que define casos de nepotismo (nomear cônjuges ou parentes de até terceiro grau em cargos de comissão). A reportagem mostrou que Bolsonaro já empregou em seu gabinete na Câmara seus ex-sogros.

— Já botei parentes no passado, sim, antes da decisão de que nepotismo seria crime. Qual é o problema? —disse o presidente.

MINISTROS COM PARENTES

Bolsonaro sustentou ser “natural” substituir funcionários por parentes destes em caso de pedidos de demissão ou falecimento:

— É natural quando alguém vai embora do meu gabinete... Quando morre, no velório já tem dez pedidos de emprego de quem está do meu lado. E é natural colocar quem está do seu lado.

O presidente reclamou de a reportagem ter levado em conta nomeações desde quando ele entrou para a vida pública. Disse ainda que, no caso de uma de suas exmulheres, Ana Cristina Siquei Valle, os parentes teriam sido empregados antes de seu casamento.

— Vocês foram procurar funcionária que eu empreguei em 1989. Faz as contas aí. 30 anos. E outra coisa: quando eu botei os parentes da Ana Cristina, eu não era casado com ela. Casei uns dez, nove anos depois. E aí? Vou devolver o salário de todo mundo?

O levantamento mostra, no entanto, que os parentes de Ana Cristina estiveram lotados em gabinetes do clã Bolsonaro enquanto ela e o presidente estavam juntos e também depois.

Bolsonaro lembrou o fato de que sua atual esposa, Michelle, já era funcionária da Câmara em outro gabinete quando começou o relacionamento. Disse que questionou a Casa se deveria “renunciar” ou se ela deveria se demitir. Por fim, após um tempo lotada no gabinete do próprio Bolsonaro, ela deixou a função.

Sem dar detalhes, o presidente afirmou que algum ministro pode ter parentes empregados em funções públicas. O atual ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Antonio Francisco de Oliveira, também teve familiares empregados nos gabinetes dos Bolsonaro. Foram três — pai, mãe e tia —em períodos distintos entre 2001 e 2015.

— Se você for procurar, com certeza tem ministro que tem parente empregado por aí —disse Bolsonaro.

Na manhã de ontem, Bolsonaro foi à Igreja Fonte da Vida, em Brasília, onde participou de um culto. O presidente foi chamado de “mito” pelos fiéis e se emocionou ao abraçar o pastor César Augusto. No discurso na igreja, Bolsonaro se referiu à reportagem do GLOBO.

— A imprensa diz muito que eu ainda estou no palanque. Eu devolvo: a imprensa ainda está na oposição. — afirmou. — Por muitas vezes não leio jornal para não começar o dia envenenado.

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Em 37 casos, há indícios de que assessores não trabalhavam 

Juliana Dal Piva 

Juliana Castro

Rayanderson Guerra

Pedro Capetti

Marlen Couto

Bernardo Mello

João Paulo Saconi

05/08/2019

 

 

Dos 286 funcionários que o presidente Jair Bolsonaro e seus filhos Flávio, Carlos e Eduardo contrataram em seus gabinetes parlamentares nos últimos 28 anos, em ao menos 37 casos há indícios de que os assessores não trabalhavam de fato nos cargos. O número representa 13% do total de assessores dos mandatos do clã Bolsonaro.

Os dados integram o mapeamento feito pelo GLOBO em diários oficiais e com uso da Lei de Acesso à Informação sobre todos os assessores parlamentares nomeados pela família desde 1991. Um cruzamento de dados mostrou que, ao menos, 102 possuem algum laço familiar ou parentesco entre si.

No grupo de 37 pessoas que constaram como assessores, mas possuem indícios de que não atuavam efetivamente nos cargos, estão 20 investigadas pelo Ministério Público do Ri ono procedimento que apura peculato e lavagem de dinheiro, além deim probidade administrativa, no antigo gabinete de Flávio Bolson aron a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).

São pessoas como Márcia Oliveira de Aguiar, mulher de Fabrício Queiroz, ex-segurança de Flávio, alvo do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf ) pela movimentação atípica de R$ 1,2 milhão. Márcia constou como assessora por dez anos e jamais teve crachá na Alerj, além de declarar-se “cabeleireira” em um processo de violência doméstica. Também é a situação de Nathália Queiroz, que trabalhou como personal trainer enquanto figurou como assessora de Flávio e também de Jair.

Entre os investigados pelo MP e que possuem indícios de que não trabalharam nos cargos estão dez pessoas ligadas à família de Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro. Todos eles tiveram cargos no gabinete de Flávio e moravam em Resende no período em que constaram como assessores. Em junho, O GLOBO mostrou as histórias do aposentado José Procópio da Silva Valle, da professora aposentada Maria José de Siqueira e Silva, da fisiculturista Andrea Siqueira Valle e do veterinário Francisco Diniz. Os dois primeiros nunca tiveram crachá na Alerj. Além disso, Andrea vivia de faxinas e Diniz cursou medicina veterinária em Barra Mansa no período.

O nutricionista Rafael Góes constou como assessor do gabinete de Carlos Bolsonaro entre 2001 e 2008. Questionado se trabalhou no gabinete, também disse que “não”. Dias depois, confrontado outra vez com a informação, disse que “estava na correria” e mandou a reportagem falar com o atual chefe de gabinete, Jorge Fernandes.

A revista “Época” revelou, em junho, que Marta da Silva Valle, cunhada de Ana Cristina Siqueira Valle, sempre morou em Juiz de Fora (MG), mas esteve lotada no gabinete de Carlos, entre 2001 e 2009. Procurada, ela admitiu que nunca trabalhou para Carlos.

— Não trabalhei em nenhum gabinete, não. Minha família lá que trabalhou, mas eu não —disse Marta.

Nos gabinetes dos Bolsonaro, passaram 64 assessores que tiveram o sigilo quebrado e, atualmente, são investigados pelo MP do Rio sobre a possibilidade de ter havido rachadinha no gabinete de Flávio na Alerj.

“NOMEAÇÃO SEGUIU REGRAS”

Procurada, a assessoria do senador Flávio Bolsonaro afirmou que “a nomeação dessas pessoas ocorreu de forma transparente e de acordo com as regras da Alerj”. Além disso, “as pessoas que foram nomeadas, na época, eram qualificadas para as funções que exerciam. Trabalharam em diferentes áreas, mas sempre em prol do mandato, tanto que as votações enquanto deputado estadual foram crescentes”. O Palácio do Planalto disse que não iria comentar e o vereador Carlos Bolsonaro não retornou os contatos. A defesa da família Queiroz informou que “todas as perguntas relacionadas à investigação do MP-RJ já foram respondidas e que no momento processual adequado, prestará todas as demais informações”.