O globo, n.31408, 04/08/2019. País, p. 04

 

Quatro gabinetes, 32 famílias, 102 parentes 

Juliana Dal Piva 

Juliana Castro

Rayanderson Guerra

Pedro Capetti

Marlen Couto

Bernardo Mello

João Paulo Saconi

04/08/2019

 

 

Desde 1991, quando Jair Bolsonaro assumiu seu primeiro mandato como deputado e deu início à trajetória da família na política, o presidente e seus três filhos empregaram mais de uma centena de funcionários com parentesco ou relação familiar entre si, vários deles com indícios de que não trabalharam de fato nos cargos. Mapeamento feito pelo GLOBO durante três meses em diários oficiais e com uso da Lei de Acesso à Informação sobre todos os assessores parlamentares da família Bolsonaro identificou 286 pessoas nomeadas nos gabinetes desde 1991. Dessas, após um cruzamento de informações de bancos de dados públicos e redes sociais, a reportagem identificou que ao menos 102 têm algum parentesco ou relação familiar entre si, fazendo parte de 32 famílias diferentes. O número representa 35% do total dos funcionários indicados no período.

O primeiro caso que veio à tona é o da família do policial militar da reserva Fabrício Queiroz, ex-assessor que emplacou sete parentes em três gabinetes da família Bolsonaro (Flávio, Carlos e Jair) desde 2006. Uma que não era conhecida até agora é Angela Melo Fernandes Cerqueira, ex-cunhada de Queiroz. Em abril, os oito tiveram o sigilo quebrado em investigação do Ministério Público do Rio (MP-RJ) sobre a prática, na Assembleia Legislativa (Alerj), de “rachadinha” — apropriação de parte do salário dos funcionários.

Outro policial militar de confiança do presidente, o atual ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Jorge Antonio Francisco de Oliveira, também teve familiares empregados nos gabinetes dos Bolsonaro. Foram três — pai, mãe e tia — em períodos distintos entre 2001 e 2015. Tia do ministro, Márcia Salgado de Oliveira apareceu nos registros da Alerj como funcionária de Flávio de 2003 até fevereiro deste ano. Em 2014, porém, num processo que tramitou no Juizado Especial da Comarca de Mesquita, na Baixada Fluminense, quando acionou uma empresa de telefonia, Márcia apresentou uma procuração escrita de próprio punho, na qual informou que sua ocupação era “do lar”. Além disso, em 16 anos, ela jamais teve crachá emitido pela Alerj, procedimento que a Casa sempre recomendou a todos os seus funcionários. Procurada por telefone, Márcia disse que não trabalhou na Alerj. Após a reportagem citar seu nome completo e perguntar se trabalhou para Flávio, ela disse:

— Não, meu amor, você ligou para a pessoa errada— disse Márcia que, em seguida, desligou e retirou sua foto do WhatsApp.

Em todo o período no gabinete, ela recebeu um salário bruto médio real de R$ 7,3 mil. O gabinete de Carlos Bolsonaro na Câmara de Vereadores também abriga um militar de confiança, o sargento da reserva do Exército Edir Barbosa Góes, que teve parte da família empregada. Desde 2001, estiveram empregados a esposa Neula,a irmã Nadir e os dois filhos, Rodrigo e Rafael. O GLOBO falou com Rafael, que é nutricionista, e perguntou se ele havia trabalhado na Câmara Municipal. Ele disse que “não”. Dias depois, confrontado outra vez com a informação, disse que “estava na correria” e mandou a reportagem falar com o atual chefe de gabinete, Jorge Fernandes. Procurado no último dia 24, Fernandes não deu retorno.

O salário bruto médio real de Rafael no período da Câmara foi de R$ 6,7 mil. Em abril, o jornal “Folha de S. Paulo” já havia revelado que Nadir, mesmo nomeada no gabinete de Carlos entre 2008 e janeiro deste ano, disse que jamais trabalhara para o vereador.

A família do presidente teve 22 integrantes nomeados nos quatro gabinetes ao longo de quase três décadas. Um dos parentes que Bolsonaro nomeou foi seu primeiro sogro, João Garcia Braga, o seu Jó. Ele é pai de Rogéria Nantes Braga, mãe dos três filhos mais velhos do presidente. Braga constou como seu assessor entre fevereiro e novembro de 1991. Depois da Câmara dos Deputados, ele foi nomeado pelo neto Flávio na Alerj, onde permaneceu de 2003 a 2007. Do total de 286 funcionários, 40 transitaram em mais de um gabinete.

O salário bruto médio real de Braga foi de R$ 9,7 mil. Químico aposentado, Braga nunca teve crachá de identificação funcional da Alerj e mora em Resende, no Sul fluminense, pelo menos desde o fim dos anos 1960. O GLOBO abordou Braga na frente de sua casa, mas ele não quis comentar. Depois, procurado por telefone, reiterou que não iria se manifestar. Dois vizinhos de Braga disseram que nunca ouviram falar que ele trabalhasse para a Alerj.

Quando Bolsonaro se separou de Rogéria e passou a viver com Ana Cristina Siqueira Valle, em 1998, os pais dela também se tornaram assessores dele na Câmara. Junto vieram diversos outros parentes dela, tanto no gabinete do presidente como no dos filhos Carlos e Flávio. Devido à investigação do MP-RJ sobre a suposta prática de “rachadinha”, tiveram os sigilos fiscal e bancário quebrados com autorização judicial dez parentes de Ana Cristina, além de Braga e Léo Índio, sobrinho do presidente, que foi funcionário da Alerj entre 2006 e 2012. Entre os funcionários com relação de parentesco identificados pelo GLOBO no gabinete de Carlos estão Diva da Cruz Martins e a filha Andrea.

A primeira esteve lotada entre fevereiro de 2003 e agosto de 2005; e a segunda, de 2005 até fevereiro deste ano. Em novembro de 2013, no entanto, quando Andrea deu entrada nos papéis de seu casamento no cartório de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, identificou-se como “babá”. Já Diva, ao ser questionada pelo GLOBO se tinha trabalhado na Câmara, negou: —Não. Nunca.

Ao ser informada de que seu nome constava entre os assessores, reagiu com ironia:

—Que bom que aparece (o nome)— finalizou, entrando em casa. O salário bruto médio real de Diva no período foi de R$ 9 mil; e o de Andrea, R$ 10,7 mil.

Uma das funcionárias mais antigas do gabinete de Carlos não é conhecida no local de trabalho. Nomeada no dia 1º de abril de 2001, Regina Célia Sobral Fernandes, mulher de Jorge Luiz Fernandes, chefe de gabinete do vereador, foi procurada pelo GLOBO na Câmara. Um funcionário afirmou não conhecer nenhuma Regina que trabalhasse no local. Procurada diretamente pelo telefone, ela se esquivou dos questionamentos duas vezes e encerrou a ligação.

O salário bruto médio real dela desde 2001 é de R$ 7,4 mil. Antes de ser nomeado no gabinete de Carlos, o marido de Regina trabalhava como assessor de Jair Bolsonaro, em Brasília. No gabinete do então deputado federal, o atual chefe de gabinete de Carlos foi nomeado junto com outros dois familiares: o cunhado Carlos Alberto Sobral Fernandes (de 1995 a 1997) e a ex-cunhada Maria Janice Andrade Franco, que ficou lotada de 1991 até setembro de 2000.

Do total de 286 funcionários, 64 tiveram sigilo quebrado a pedido do MP-RJ na investigação sobre a suposta prática de “rachadinha” no gabinete de Flávio na Alerj. No fim do ano passado, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontou “movimentação atípica” de R$ 1,2 milhão, entre 2016 e 2017, nas contas de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio.

O Coaf também identificou, em outro relatório, depósitos fracionados, em dinheiro, em um período de um mês, que somam cerca de R$ 96 mil na conta de Flávio. No mês passado, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, concedeu liminar, em resposta a um pedido de Flávio, suspendendo investigações baseadas em compartilhamento de dados do Coaf sem prévia autorização judicial.