O globo, n.31407, 03/08/2019. País, p. 04

 

Erro admitido 

Daniel Gullino

Rayanderson Guerra

03/08/2019

 

 

Um dia depois de sofrer uma derrota por unanimidade no Supremo Tribunal Federal (STF) — em sessão marcada por um duro discurso do ministro Celso de Mello sobre o comportamento de Jair Bolsonaro, considerado “transgressão à autoridade suprema da Constituição” —, o presidente recuou e reconheceu que errou. Bolsonaro chamou de “falha minha” o fato de ter enviado ao Congresso duas medidas provisórias (MPs) sobre o mesmo tema na mesma legislatura, o que é proibido constitucionalmente. Nesse caso, ele não poderá transferir a atribuição sobre as demarcações de terras indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura.

A admissão do erro é um novo recuo do governo em decisões tomadas ou anunciadas. E marcou também um limite imposto pelo STF logo na primeira sessão plenária do semestre. Bolsonaro disse ontem que não foi bem assessorado no caso. —Teve uma falha nossa, já adverti minha assessoria. Teve uma falha nossa. A gente não poderia no mesmo ano fazer uma MP de assunto (que já estava discutido). Houve falha nossa. Falha minha, né. É minha, porque eu assinei. Questionado, então, se a decisão do STF havia sido correta, o presidente concordou:

— Eles acertaram. Sem problema nenhum. Em janeiro, uma medida provisória anterior já previa que a demarcação de terras indígenas ficaria com a Agricultura. Ao analisar

a medida, o Congresso devolveu essa função à Funai. Mesmo assim, o presidente editou uma nova MP sobre este ponto. Assim, em junho, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, concedeu decisão liminar suspendendo a validade desse trecho. Na quinta-feira, Celso de Mello, o mais antigo integrante do STF, aproveitou a votação para falar diretamente ao presidente. Ele disse que a medida provisória de Bolsonaro revelou um “comportamento que transgride a Constituição”.

O decano também alertou para a possibilidade de ocorrer um “processo de quase imperceptível erosão” das liberdades da sociedade civil, acrescentando que uma busca autoritária por controle do Estado é um risco para direitos do cidadão. Nas últimas semanas, Bolsonaro endureceu seu discurso público com várias declarações ofensivas a adversários ou instituições — na terça-feira, em entrevista ao GLOBO, afirmou que não recuará em seu estilo porque ele é “assim mesmo”.

RELAÇÃO COM CONGRESSO

Desde o início do ano, o presidente já recuou em outros assuntos. No caso da flexibilização do porte de armas, já foram editados sete decretos desde janeiro. Em maio, ele chegou a anunciar a intenção de revogar por decreto a Estação Ecológica de Tamoios, na região de Angra dos Reis, para depois reconhecer que seria necessário uma nova lei sobre a reserva. Editar duas MPs sobre o mesmo tema é um ato incontroverso do ponto de vista da legalidade, como confirmam a unanimidade entre os ministros do STF e a própria admissão do erro por parte de Bolsonaro.

Nos próximos meses, contudo, o Supremo e o Congresso analisarão medidas do governo sobre temas mais polêmicos, como pontos da agenda armamentistas e da pauta de costumes. Embora tenha conseguido aprovar na Câmara o principal projeto legislativo de seu governo, a reforma da Previdência, a relação do governo com o Congresso foi instável durante todo o primeiro semestre. Ao enviar novamente uma MP relativa a um assunto sobre o qual os parlamentares já haviam deliberado, Bolsonaro teve uma atitude de que não respeitou “o princípio da separação de Poderes”, nas palavras de Celso de Mello.

“Teve uma falha nossa, já adverti minha assessoria. Falha minha, né? É minha, porque eu assinei”

Jair Bolsonaro

RECUOS RECENTES DE BOLSONARO

Estação Ecológica

O presidente anunciou a intenção de revogar a criação da Estação Ecológica de Tamoios, em Angra dos Reis, para que o local tivesse uma exploração turística. Numa transmissão ao vivo, em junho, reconheceu que não poderia acabar com Tamoios por decreto. “Um erro meu, não é? Eu reconheço isso daí, decretos que demarcaram estações ecológicas: fui ver na Constituição e realmente eu estava errado. Mas olha, é um absurdo. Quem revoga decreto na questão ambiental é uma lei”.

Decreto das armas

Entre idas e vindas, foram sete decretos sobre o tema. “Nós fizemos o decreto e começaram a pipocar ações na Justiça. Até nós reconhecemos que dava margem e refizemos”, disse, em maio.

Censo

Em julho, disse que o Censo carecia de critérios específicos em relação ao autismo e que existia outra “proposta mais precisa” para levantar estes dados. Depois, sancionou lei que incluiu no Censo de 2020 perguntas sobre autistas.