Correio braziliense, n.20533, 11/08/2019. Política, p. 12

 

Termômetro do voto

Rodrigo Craveiro

11/08/2019

 

 

Argentina » Mais de 33 milhões de eleitores participam hoje das Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (PASO), uma prévia para a disputa presidencial de outubro. Especialistas destacam a importância da consulta e preveem forte polarização política

O enredo parece digno de um tango argentino. De um lado, a ex-presidente acossada por escândalos de corrupção, que se aproveita da deterioração econômica para tentar voltar ao poder, mesmo à sombra de um advogado. De outro, o chefe de Estado que tenta subverter o pessimismo, contrariar quase todas as pesquisas e pavimentar o caminho para mais quatro anos à frente da Casa Rosada, também se aliando a um advogado. As chapas Alberto Fernández-Cristina Fernández de Kirchner e Mauricio Macri-Miguel Ángel Pichetto serão colocadas à prova pela primeira vez hoje, nas Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (PASO).

O direitista Macri aposta em evitar “um retorno ao passado” para garantir a direita no controle da Argentina, mas precisará convencer o eleitorado de que o seu populismo é a melhor solução ante o peronismo. “Neste domingo, 11 de agosto, necessito que nos acompanhem com seu voto para que sigamos em frente. Para demonstrarmos que nós, argentinos, juntos, somos imparáveis. E nós faremos por nossos filhos, por nossos netos, por nós mesmos e porque amamos este país”, declarou Macri, em seu último discurso antes das PASO, em Córdoba.

“Que as pessoas voltem a ser feliz, a ter trabalho, que as crianças vão ao colégio para estudar e não para comer, que os aposentados cheguem à farmácia com a receita completa. No primeiro semestre de goveno, mudaremos a Argentina”, prometeu Alberto Fernández, acompanhado de Cristina, no encerramento da campanha da coligação “Frente de Todos”, também em Córdoba. Miguel De Luca, cientista político da Universidad de Buenos Aires (UBA), explicou ao Correio que as PASO de hoje são importantes, pois permitirão apreciar o índice de apoio eleitoral dos distintos partidos e candidatos para as eleições gerais de 27 de outubro. “Elas funcionam como uma fotografia das preferências políticas dos cidadãos, meses antes das eleições presidenciais. Também permitem, tanto aos partidos quanto aos eleitores, recalcular as estratégias e apoios antes do pleito de outubro.”

Sem opções

De acordo com Amilcar Salas Orono, cientista político e professor em várias universidades federais da Argentina, os principais espaços competitivos — as chapas “Frente de Todos”, de Alberto e Cristina, e “Juntos por el Cambio”, de Macri e  Pichetto — concentram quase 80% da preferência dos 33,8 milhões de eleitores argentinos. “Como não existem opções sólidas a essas duas forças, em vez de serem uma instância de seleção intrapartidária, as PASO se transformaram praticamente em uma nova eleição, e isso é percebido pelos próprios cidadãos”, disse à reportagem.

Orono admite que há uma certa curiosidade sobre como será a resposta de Macri nas urnas. “A situação geral do país é muito ruim, o que deve provocar profundas complicações para o candidato. No entanto, uma das qualidades do macrismo como espaço político está no fato de ele ter desenvolvido toda uma maquinaria eleitoral — de interpelação das redes sociais, dos meios de comunicação, da propaganda e de intervenções territoriais. Esse mecanismo se mostrou bastante exitoso em outras oportunidades”, comentou. Ele acredita que Macri aposta em uma campanha eleitoral semelhante à de Jair Bolsonaro.

Turnos

Por sua vez, o também cientista político Fernando Domínguez Sardou, professor da Pontifícia Universidad Católica Argentina (em Buenos Aires), as PASO ajudarão a determinar os rumos das eleições de outubro. Ele afirmou que o sistema eleitoral argentino, na teoria, se compõe de três turnos: eleições primárias (PASO), eleições gerais e o segundo turno das presidenciais. “Como os pretensos candidatos e os eleitores estão obrigados a participar, a votação de hoje se assemelha a uma ‘grande pesquisa’. As primárias brindam com informação quase perfeita, tanto para partidos quanto para o eleitorado, e podem reordenar as preferências dos votantes para as eleições gerais. Nesse sentido, podem ajudar a contribuir com os rumos da votação de outubro.”

Sardou disse não haver dúvidas da polarização da campanha deste ano. Ele acha provável, ainda que não seja uma previsão necessariamente segura, que Alberto Fernández se imponha nas PASO. “Isso não implica vitória em outubro. Em qualquer cenário, a Frente de Todos, dele e de Cristina, será uma das duas principais forças políticas nacionais. Poderíamos esperar um cenário de paridade entre elas.”

Para saber mais

Consulta obrigatória

Durante as Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (PASO), não há cargos em disputa. Na realidade, elege-se pessoas que ocuparão as candidaturas durante as eleições gerais de outubro. De acordo com o cientista político Fernando Domínguez Sardou, em âmbito nacional e em um importante número de províncias, incluindo a de Buenos Aires, as regras são similares. Nas eleições primárias, estão obrigados a competir todos os partidos que desejarem disputar o pleito de outubro. Para ter a participação credenciada, o candidato precisa obter 1,5% dos votos válidos.

Sardou explica que todos os cidadãos estão obrigados a votar, assim como nas eleições gerais — durante as quais serão escolhidos presidente e vice, 24 senadores (provenientes de sete províncias e da Cidade Autônoma de Buenos Aires) e metade da Câmara dos Deputados. Miguel De Luca, cientista político da Universidad de Buenos Aires (UBA), acrescenta  que, amanhã, além dos candidatos a presidente e vice, serão eleitos os postuladores a senadores nacionais (federais) em oito províncias (o Senado se renova em um terço a cada dois anos).

Quatro províncias votarão para governador, para legisladores e para intendentes, incluindo as de Buenos Aires, Catamarca e La Rioja, além da cidade autônoma de Buenos Aires. Como a província de Buenos Aires concentra quase a metade do eleitorado de toda a Argentina, ela transforma as PASO numa espécie de termômetro para as eleições presidenciais.

Primárias em números

33.841.837

É o total de eleitores inscritos para as PASO, de acordo com a Câmara Nacional Eleitoral. O voto nas primárias é compulsório.

10

candidatos se apresentaram para disputar, hoje, as PASO. No entanto, somente duas chapas têm chances reais de chegar à Casa Rosada, a sede do Executivo.

130

deputados nacionais serão renovados na consulta eleitoral deste domingo — a Câmara é composta por 257 assentos, e a metade deles é renovada a cada biênio.

24

senadores nacionais também serão escolhidos hoje. Ao todo, o Senado possui 72 cadeiras — um terço é renovado a cada dois anos.

37%

é a porcentagem de eleitores concentrados na província de Buenos Aires, sem contabilizar a capital.

1,5%

é o índice de votos exigidos a cada candidato para serem aceitos na disputa das eleições gerais de outubro.

Pontos de vista

Por Amilcar Salas Oro

Economia em pauta

“As primárias de hoje se tornaram uma eleição de candidatos e de conformação. Trata-se de uma verdadeira competição intrapartidária, não entre as legendas. É de se esperar que o espaço de Alberto Fernández e de Cristina Fernández de Kirchner capture, enquanto espaço de oposição ao governo de Mauricio Macri, todo o descontentamento do cidadão, manifestada há dois anos em relação à situação econômica. São inequívocos os sinais de deterioração da economia, à margem de outros aspectos visíveis na sociedade, impossíveis de serem resolvidos pelo próprio governo.”

Cientista político, doutor em ciências sociais, professor em várias universidades federais na Argentina

Por Fernando Domínguez Sardou

Um líder emdesvantagem

“Mauricio Macri apresenta possibilidades de vitória nas eleições de outubro. Em seu benefício, ele conta com o acesso ao aparato da publicidade estatal da obra pública. Contra ele, há a atribuição de responsabilidade pela crise econômica vigente na Argentina. Macri chega às primárias de hoje em desvantagem. No entanto, e dado o papel ‘informador’ exercido pelas Paso, o eleitorado pode mudar de rosto em outubro. Após os resultados de hoje, será possível falarmos com mais propriedade sobre as verdadeiras chances do presidente. Por ora, são fortes as possibilidades de reeleição.”

Cientista político e professor da Pontifícia Universidad Católica Argentina (Buenos Aires)

Por Miguel De Luca

Diferença encurtada

“A grande maioria das pesquisas eleitorais atribui à Frente de Todos (Alberto Fernández-Cristina Fernández de Kirchner) o primeiro lugar na votação das PASO. Os analistas concordam que a diferença com Mauricio Macri foi encurtada nas últimas semanas. Os prognósticos indicam que a Frente de Todos estaria entre dois e sete pontos percentuais à frente da Juntos por el Cambio (Macri-Pichetto). Macri ainda mantém possibilidades de se reeleger em outubro, desde que consiga chegar às eleições com certa tranquilidade na economia (especialmente no que diz respeito à valorização do dólar e à taxa de inflação).”

Cientista político da Universidad de Buenos Aires (UBA)