Correio braziliense, n.20535 ,13/08/2019. Política, p. 2/3

 

O julgamento de Dallagnol

Jorge Vasconcellos

Renato Souza

13/08/2019

 

 

Poder » Conselho Nacional do Ministério Público analisa hoje dois recursos envolvendo o coordenador da Lava-Jato em Curitiba, um deles pede o afastamento das funções. Presidente do STF, Dias Toffoli critica a força-tarefa, que teve as atividades prorrogadas por um ano pela PG.

 

Dos 146 itens da pauta de julgamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), hoje, dois têm como alvo o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Lava-Jato, maior operação de combate à corrupção da história do país. Segundo apurou o Correio, ele pode ser punido com sanções como censura, afastamento temporário e, até, aposentadoria compulsória.

Um dos itens da pauta da sessão é uma reclamação disciplinar aberta a pedido do senador Renan Calheiros (MDB-AL). Alvo de 13 inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF), o emedebista alega que o coordenador da Lava-Jato faz acusações falsas contra ele desde 2017, ainda no período pré-eleitoral, “em nítida tentativa de influenciar o resultado do pleito”, segundo trecho do documento. Existe a possibilidade de a reclamação ser retirada de pauta, porque Renan incluiu novas informações no texto e pediu o afastamento do procurador.

Também será avaliado hoje um recurso apresentado por Dallagnol com a intenção de arquivar um processo administrativo disciplinar que foi aberto após queixa apresentada pelo presidente do STF, Dias Toffoli. O caso tem origem em uma entrevista concedida pelo procurador à rádio CBN, em 2018, na qual ele afirmou que algumas decisões de ministros da Suprema Corte passam a mensagem de leniência em favor da corrupção. Em estágio avançado, esse procedimento pode resultar em punição ao procurador.

No CNMP, há mais oito reclamações disciplinares contra Dallagnol. Seis desses procedimentos têm relação com o conteúdo das supostas mensagens hackeadas do Telegram e divulgadas pelo site The Intercept Brasil.

Cercada de expectativas, a sessão plenária desta terça-feira será conduzida pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, presidente do CNMP, na mesma semana em que o presidente Jair Bolsonaro deve anunciar o nome do substituto dela à frente da PGR. A reunião também ocorre apenas quatro dias depois de o Intercept publicar uma reportagem em que Dodge é citada nos supostos diálogos do Telegram. De acordo com a matéria, ela era tratada como um obstáculo à operação por Dallagnol e outros procuradores, que teriam cogitado minar a imagem dele por meio de envio de informações à imprensa.

Supremo

A sessão plenária será realizada também sob forte pressão de apoiadores e críticos da atuação do procurador de Curitiba. Ontem, durante evento de empresários em São Paulo, Toffoli disse que a força-tarefa “não manda nas instituições”.

Para a advogada Vera Chemin, mestre em administração pública e pesquisadora do direito constitucional, é provável que Dallagnol receba do CNMP uma pena de censura no Processo Administrativo Disciplinar relacionado a críticas feitas por ele contra ministros do STF. “O caso trata de críticas de um procurador a decisões de ministros da Suprema Corte, mas o procurador Dallagnol apenas disse que algumas decisões poderiam indicar uma leniência em favor da corrupção”, ressaltou. “Em momento nenhum ele chamou um ministro do Supremo de leniente com a corrupção. Nesse caso, o plenário pode impor uma pena de censura, mas vai depender da interpretação dos conselheiros.”

O advogado constitucionalista Marcellus Ferreira, consultor da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido), afirmou que, em decorrência das declarações, Dallagnol pode ser punido tanto no CNMP quanto pelo Supremo. “A ilegalidade dessa conduta está prevista na legislação. Um procurador de primeira instância não pode afrontar dessa forma as instituições, que estão funcionando. Não pode um procurador, entrincheirado em Curitiba, fazer essas declarações sobre o Supremo Tribunal Federal”, afirmou.

Para ele, as declarações podem ser incluídas em um inquérito aberto pelo próprio Supremo. “O regimento do STF destaca que o presidente da Corte tem que proteger a instituição. Então, esse tipo de comentário sobre os ministros pode ser alvo de investigação criminal contra o procurador”. Ele, no entanto, não acredita em punição por parte do CNMP, em decorrência do “corporativismo”.

Lava-Jato prorrogada

Raquel Dodge prorrogou, por um ano, o grupo de trabalho da Lava-Jato no Paraná. A portaria com a decisão será submetida ao Conselho Superior do Ministério Público Federal (CSMPF). Essa é a quinta vez que são prorrogadas as atividades da força-tarefa, criada em 2014, após as primeiras diligências envolvendo suspeitas de desvios na Petrobras. Atualmente, 15 procuradores, 19 servidores e 26 estagiários integram o grupo.

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O tango argentino

Luiz Carlos Azedo

13/08/2019

 

 

A derrota do presidente liberal Maurício Macri nas eleições primárias da Argentina pôs em xeque o acordo do Mercosul com a União Europeia, do qual o presidente argentino foi o principal artífice, e estressou as relações do Brasil com a Argentina, em razão da forte reação contrária do presidente Jair Bolsonaro ao resultado. Em solenidade em Pelotas, o presidente da República disse que os gaúchos deveriam se preparar para ser uma nova Roraima, numa alusão à fuga em massa de venezuelanos em razão da crise do regime de Nicolás Maduro.

O peronista de centro-esquerda Alberto Fernández obteve ampla vantagem sobre Macri nas eleições primárias para a Presidência do país. Com 99,37% das urnas apuradas, com Cristina Kirchner como vice, teve 47,66% dos votos, e Macri, 32,08%. Roberto Lavagna aparece em 3º lugar, com 8,23% dos votos. O resultado também provocou pânico no mercado financeiro da Argentina: o peso argentino fechou em queda de 15,27%, cotado a 53,5 por dólar — no pior momento do dia, chegou a valer 65 por dólar. A bolsa de valores recuou 37,01%.

Alberto Fernández conseguiu capturar os votos da classe média insatisfeita com a recessão argentina e, com Cristina Kirchner na vice, manter o apoio dos sindicatos argentinos. Porém, sua candidatura não é comprometida com os ajustes econômicos necessários para equilibrar a economia, pelo contrário, é vista como a volta do projeto populista de esquerda.

Macri tenta fazer do limão uma limonada, usando a queda da bolsa e a desvalorização do peso para culpar o adversário: “Precisamos entender que o maior problema é que a alternativa kirchnerista não tem credibilidade no mundo, não gera confiança para que as pessoas venham investir. Eles deveriam fazer uma autocrítica”, disse, ao comentar a repercussão do resultado das prévias na economia. Criadas em 2009, as prévias de domingo foram estabelecidas para escolha dos candidatos de cada chapa, mas, como não houve disputa interna nos partidos, refletiu a atual correlação de forças entre governo e oposição, tendo em vista as eleições marcadas para 27 de outubro.

A situação da economia da Argentina é complicada. O país está em recessão e teve de recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI), com uma inflação de mais de 55% depois de três anos de políticas de Macri. Mesmo assim, os investidores ainda preferem a reeleição do atual presidente à volta do peronismo. Cristina Kirchner governou entre 2007 e 2015 e adotou um modelo econômico que praticamente afundou a economia, provocando a recessão em que a Argentina ainda se encontra. Nacionalizou empresas, manipulou dados oficiais e causou repulsa aos investidores. Sua estratégia era um meio-termo entre a “nova matriz econômica” da ex-presidente Dilma Rousseff, sua amiga, e o bolivarianismo de Hugo Chávez, que resultou na crise do regime venezuelano de Nicolás Maduro.

Aliança tóxica

Após o resultado das prévias, Macri admitiu que existe uma bronca dos argentinos com sua política econômica, em razão do empobrecimento das famílias. Segundo ele, seu programa de reformas precisa de mais tempo para dar certo. O presidente argentino ainda acredita que poderá convencer os eleitores a apoiá-lo. Entretanto, o apoio do presidente Jair Bolsonaro, que foi muito desejado por Macri, virou uma aliança tóxica, em razão das declarações polêmicas do chefe do Executivo brasileiro. Como a imagem de Bolsonaro no exterior não é boa, os peronistas passaram a associar todo o noticiário negativo do Brasil à imagem de Macri.

Os argentinos são orgulhosos e têm uma velha rivalidade com o Brasil, que estava confinada aos estádios de futebol, mas pode recrudescer em função da eventual interferência do governo brasileiro nas eleições. Um dos temas mais sensíveis, por exemplo, é o caso da tortura. A ditadura argentina foi das mais sanguinárias da América Latina e seus órgãos de segurança mantiveram estreita ligação com seus similares brasileiros durante o nosso regime militar. Cerca de 30 mil pessoas, num período de sete anos, foram sequestradas e mortas, ou seja, um em cada mil argentinos, a maioria jovens, foi assassinado pelos militares. Quatro juntas militares, a partir do último dos seis golpes militares, em 1976, fizeram desaparecer não somente os adversários, mas também seus filhos de até quatro anos, que eram adotados por familiares de militares.

Mães de desaparecidos que começaram a se reunir em 1977 na Praça de Maio para cobrar do governo notícias de seus filhos organizaram uma rede de informações que lhes permitiu localizar mais de uma centena de crianças sequestradas pela ditadura. As Mães da Praça de Maio se tornaram Avós da Praça de Maio. A ditadura acabou em 1983, com a economia do país em frangalhos, depois de uma desastrosa guerra contra o Reino Unido pela posse das Ilhas Malvinas. Com a democratização do país, todos os generais integrantes das juntas militares foram julgados e condenados por tortura, assassinato e morte dos milhares de argentinos.