Correio braziliense, n.20535 ,13/08/2019. Mundo, p. 12

 

Aposta no medo

Rodrigo Craveiro

13/08/2019

 

 

Argentina » Na primeira reação após o fracasso nas primárias, o presidente Macri adverte que volta do kirchnerismo pode significar o fim do país e culpa os rivais pelo caos no mercado. Analistas veem risco à governabilidade e apostam em vitória de Alberto Fernández

Depois do choque, a tentativa de explicar o fracasso nas urnas sem se desvincular da realidade e a adoção da retórica do medo. “Isso é apenas uma mostra do que pode ocorrer. Não podemos retornar ao passado, pois o mundo vê isso como o fim da Argentina. (…) Isso é pelo passado, há muita gente que não deixa seu dinheiro neste país, que vai embora deste país. O que pode acontecer é horrível”, insistiu o presidente argentino, Mauricio Macri, ao responsabilizar o kirchnerismo pela reação desastrosa do mercado ao resultado da Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (PASO) do último domingo. “Temos de entender que o problema maior é que a alternativa kirchnerista não goza de credibilidade nem de confiança no mundo. Isso é algo que o kirchnerismo deveria fazer uma autocrítica e resolvê-lo. Construir a credibilidade que não tem. Há um problema grave entre o kirchnerismo e o mundo”, acrescentou.

Macri descartou fazer alterações e declarou que as eleições de 27 de outubro serão uma “boa oportunidade” para demonstrar que a mudança segue. A magnitude do golpe imposto pelo peronismo não foi prevista pelos analistas políticos. Com 99,37% das urnas apuradas, a chapa Alberto Fernández-Cristina Fernández de Kirchner (Frente de Todos) obteve 47,66% dos votos contra 32,08% para a aliança Mauricio Macri-Miguel Ángel Pichetto (Juntos por el Cambio), durante as PASO.

Especialistas consultados pelo Correio explicam que a reação negativa do mercado e a diferença de 15 pontos percentuais entre as duas principais coligações praticamente minam as chances de reeleição e colocam em xeque a governabilidade de Macri. “Parece impossível que Macri se recupere e consiga uma vitória nas eleições de 27 de outubro. Ele está arruinado e não conseguirá controlar a economia. Creio que buscará uma coalizão e o apoio de outros setores, como ocorreu com o ex-presidente Fernando de la Rúa (1999-2001). Mas os políticos não o acompanharão, pois não desejarão fazer parte do fracasso da coalizão”, disse Raúl Aragón, consultor político e diretor do Programa de Estudos de Opinião Pública na Universidad Nacional de La Matanza (UNLaM).

Para Enrique Peruzzotti, diretor do Departamento de Ciência Política e de Estudos Internacionais da Universidad Torcuato Di Tella (em Buenos Aires), o fracasso da chapa cria um cenário inédito, pois o resultado provocou forte turbulência econômico e uma significativa perda de reputação para o governo no momento em que supostamente se inicia a campanha eleitoral. “Isso impõe ao governo duplo desafio: responder às consequências econômicas que o resultado das PASO produziu e, ao mesmo tempo, tratar de recuperar os setores do eleitorado que expressaram sua repulsa. É uma tarefa difícil, pois o resultado piorou os índices econômicos e causou muito ruído político”, comentou. Segundo Peruzzotti, o êxito de Macri nas eleições de outubro dependerá da habilidade do governo e da responsabilidade da oposição.

Mal-estar social

Cientista político da Universidad Católica Argentina, Fernando Domínguez Sardou acredita que os 15 pontos de vantagem da “Frente de Todos” são um claro sinal contra o governo Macri. “Nesse sentido, as PASO nos brindaram com uma informação que as pesquisas não trouxeram: o mal-estar social para com a gestão do presidente era maior do que o analisado pela mídia e por especialistas. A falta de pesquisas críveis combinadas dificultou a análise dos cenários.” Ele prefere interpretar a vitória de Fernández e de Cristina não como uma adesão plena à fórmula política, mas como rejeição à gestão de Macri.

Uma frase sintetiza bem o resultado das PASO de domingo: “O povo votou com a geladeira, não com o televisor”. Segundo Sardou, a grave crise econômica, combinada com o descumprimento das promessas à classe média (redução da inflação ou melhor em termos de emprego), foi atribuída a Macri pelo eleitorado. A recuperação do presidente depende, na opinião dele, de vários fatores: aumento da participação eleitoral; forte adesão dos novos eleitores; transferência de votos de terceiras forças (como os candidatos Roberto Lavagna, Juan José Gómez Centurión e José Luis Espert) para Macri; além da perda de eleitores por parte de Alberto Fernández. “Tais fenômenos foram vistos em eleições anteriores, nunca antes combinados. Se acrescentarmos a isso o mal-estar econômico esperado após as reações do mercado, isso fica mais difícil. Ao mesmo tempo, os eleitores das terceiras  forças dificilmente migram para o macrismo”, arrematou Sardou.

Dia sombrio na economia

O mercado argentino reagiu da pior forma possível ao fracasso de Mauricio Macri nas primárias. Foi uma segunda-feira sombria. O peso argentino derreteu ante o dólar, a bolsa recuou 34 pontos percentuais. O Banco Central argentino elevou a taxa de juros a 74% ano e preparou um leilão de US$ 50 milhões, em uma tentativa de conter a corrida cambial. Em Buenos Aires, o dólar abriu a 53 pesos, mas rapidamente alcançou os 60 pesos e fechou a 57,30 — desvalorização de 18,76% em relação a sexta-feira. Casas de câmbio desligaram os letreiros e, em alguns momentos, os sites de bancos saíram do ar.

Para saber mais

Marca da justiça social

O passado está cada vez mais presente na política argentina. Juan Domingo Perón morreu há 45 anos, mas  seu legado continua dominando o imaginário popular e a ideologia no país vizinho. O peronismo, movimento criado por Perón, prioriza a justiça social. Surgiu depois da Revolução de 1943, que culminou na derrocada da chamada “Década Infame”. Em seu primeiro governo (1946-1952), Perón avançou a redistribuição de riquezas, forjou um Estado de bem-estar social, fortaleceu os sindicatos e, com a ajuda da mulher, Eva Perón, levou adiante uma ampla política de ajuda social. Na segunda gestão  (1952-1955), Perón enfrentou um aumento da violência política e de dificuldades econômicas, o que levou a reduzir a participação dos trabalhadores na riqueza total. Em 16 de setembro de 1955, ele foi derrubado por um golpe militar.

Pontos de vista

Por Fernando Domínguez Sardou

Cenário confuso

“As PASO reordenaram não apenas a competição, mas também a ação do governo. Como me parece difícil que o presidente Mauricio Macri consiga a reeleição em 27 de outubro, o governo se encontra em uma dupla encruzilhada: por um lado, tem de garantir uma transição política ordenada; por outro, precisa levar adiante uma série de decisões políticas fortes para responder à reação dos mercados ante a derrota nas primárias. Por sua vez, Alberto Fernández se veria na necessidade de moderar o próprio discurso e de se mostrar mais como presidente do que como candidato. O cenário é confuso e complexo.”

Cientista político e professor da Universidad Católica Argentina

Por Enrique Peruzzotti

Erosão do governo

“Os resultados foram surpreendentes, principalmente pela diferença entre todos e os candidatos governistas. Isso causou forte impacto político, que se traduziu em intensa desvalorização do peso argentino e dos ativos. É óbvio que o resultrado indica forte erosão do apoio ao governo, inclusive nos distritos que lhe eram favoráveis, como Santa Fé e Córdoba. Ficaram de pé os bastiões da capital federal (Buenos Aires) e de Córboba. Ainda assim, esses distritos tiveram forte queda do apoio eleitoral. Esse fenômeno indica um voto de aberto rechaço ao governo.”

Diretor do Departamento de Ciência Política e de Estudos Internacionais da Universidad  Torcuato Di Tella (em Buenos Aires)

Por Raúl Aragón

Governança em xeque

“O significado da vitória contundente da chapa Alberto Fernández e Cristina Kirchner é o desgaste muito profundo do oficialismo. O impacto mais direto tem sido sobre o controle dos mercados, com o aumento do dólar e da taxa de juros. Isso provocou um início de corrida aos bancos. Trata-se de um fenômeno muito negativo para Macri, pois pode não apenas comprometer as chances de reeleição como a própria governabilidade. A política econômica da Casa Rosada beneficiou, basicamente, as companhias energéticas e o sistema financeiro. A maioria da população tem empobrecido.”

Diretor do Programa de Estudos de Opinião Pública na Universidad Nacional de La Matanza (UNLaM)

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Bolsonaro teme invasão

13/08/2019

 

 

Em visita a Pelotas (RS), o presidente Jair Bolsonaro causou polêmica ao comentar o resultado das Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (PASO) no país vizinho e alertar sobre o risco de invasão de argentinos no Brasil. “Povo gaúcho, se essa esquerdalha voltar aqui na Argentina, nós poderemos ter, sim, no Rio Grande do Sul, um novo estado de Roraima”, afirmou, ao citar o êxodo de venezuelanos em direção ao norte do Brasil, ante a crise no país de Nicolás Maduro. “E não queremos isso: irmãos argentinos fugindo para cá, tendo em vista o que de ruim parece que deve se concretizar por lá, caso essas eleições realizadas ontem (domingo) se confirmem no mês de outubro”, acrescentou.

Bolsonaro pediu aos seguidores que não se esqueçam o que ocorreu nas primárias da Argentina. “O que aconteceu nas eleições de ontem (domingo)? A turma da Cristina Kirchner, que é a mesma da Dilma Rousseff, que é a mesma de (Nicolás) Maduro e Hugo (Chávez), e Fidel Castro, deu sinal de vida aqui”, advertiu. O Clarín e o La Nación, principais jornais da Argentina, repercutiram as declarações de Bolsonaro em seu site e publicaram um vídeo com trecho do discurso do brasileiro. Segundo O Globo, Bolsonaro não descarta rever o Mercosul, em caso de derrota de Macri nas eleições de 27 de outubro.

Lula

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que cumpre pena por corrupção na Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, usou o perfil oficial no Twitter para enviar uma mensagem à chapa vitoriosa nas PASO de anteontem. “Parabéns aos companheiros Alberto Fernández e Cristina Fernández de Kirchner pelo expressivo resultado nas primárias argentinas. É preciso dar esperança ao povo, trazer dias melhores e cuidar de quem mais precisa. Um forte abraço do amigo Lula”, escreveu.

A também ex-presidente Dilma Rousseff, citada nominalmente por Bolsonaro no discurso de ontem, escreveu que a vitória da chapa Fernández-Kirchner “é uma luz no fim do túnel para o povo e para a América Latina, e um enorme alento para todos que lutamos pela democracia”. “Triunfo animador das forças progressistas sobre o neoliberalismo”, emendou. Dilma lembrou que Alberto Fernández visitou Lula na prisão, quando criticou o governo Bolsonaro. “Esse governo está criando uma mácula muito forte para o Brasil. (…) É uma mácula ao Estado de direito. (…) Como sou um homem comprometido com o Estado de direito, vou estar ao lado de Lula o tempo necessário, até que a Justiça entenda que há de se respeitar as garantias de todos cidadãos e também a de Lula”, comentou.

Frase

“Não queremos isso: irmãos argentinos fugindo para cá”

Jair Bolsonaro, presidente do Brasil